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Autopsicografia
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O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
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E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
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E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
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Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlaçemos as mãos).
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Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
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Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E sem desassossegos grandes.
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e de gestos comedidos
Aqui
neste canto da cidade
preso à roda do leme
em sonhos
que sonho em ti
busco o passado que não fui
no futuro que não serei
neste fogo vento suão
murmúrio do teu sorriso
verde brisa na planura
fresca do teu olhar
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Preso por arames
Meto-me na mala
Ponho o pé na estrada
Malabarista do verbo
Bordejando as chamas
Tiro das palavras o sentido que lá não está
Hoje,
De novo á beira do caminho
Ergo novamente os diques
Tapo os interstícios da muralha que rompeste
Baixo lentamente a vizeira
Reponho a máscara
Numa pirueta
Até que o coração pare
ou a serenidade regresse
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Mas os livros não se sentam á nossa beira,
nem tem olhos, nem sorriem
nem nos abraçam,
nem connosco passeiam pela rua, pelo campo.
Nada podemos dar aos livros
senão as letras dos nossos pensamento ou
um pouco de nós
para que chegue aos outros.
E os seus lábios são os nossos lábios.
Porque se os livros tivessem olhos
e lábios e mãos e dedos
seriam talvez pessoas
mas nunca livros.
1969.Março.19
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Cálidas, delicadas, saltitantes
brotam dos nossos lábios as palavras ...
Por entre os dentes cerrados
duras, agrestes, cortantes
irrompem as palavras.
São uma ponte, um muro
alinhadas ou em torvelinho
um labirinto, um caminho
enquanto o tempo escorre
----------e o carinho apetece.
Tantas palavras para
não dizer
que somos jovens
homem e mulher
enquanto as mãos
compostas
pousam no regaço ou no volante
enquanto lá fora
correm o ar e a brisa e no mar se quebram as ondas
e na estrada
passam os carros velozes.
Tanto mar e tanta sede.
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Correm os rios e as ondas
-----------------em espuma se desfazem
A brisa traz o cheiro a maresia
enquanto ouço nesta alvorada
----------------a carícia do teu rosto
----------------no veludo da voz quando despertas
----------------o teu corpo esbelto e apetecido.
Procuro-te na ternura das mãos
------------enquanto
------------sequiosos
------------os lábios murmuram
palavras de silêncio e prazer.
Gaivotas partem em bandos.
E dói esta mágoa do que ficou encoberto
------------------como bosque semeado fora do tempo
------------------como sol arrancado antes de florir.
1986.05.01 - Setúbal
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DECLARAÇÃO: O poeta é um fingidor
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Talvez porque o escriba, embora malabarista do verbo bordejando a chama, pouco valor teria nas histórias que inventava com a liberdade e arte que a todos os escribas é permitido.
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