Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

.

Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

.

Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sábado, 8 de outubro de 2016

Viagens - memórias e registos

* Victor Nogueira

Índice

Viagem às Mabubas
Viagem ao Farol das Lagostas
Na Ilha do Mossulo
Passeio à barra do Cuanza
De Luanda a Malange
 Évora - Lisboa - Évora
Pelo  Alentejo, de comboio
Pelo Alentejo,  sobre 4 rodas
Sobrevoando Évora
Por Setúbal
Do Terreiro do Paço ao Cais do Sodré
Setúbal - Barreiro  - Setúbal
De Lisboa ao Mindelo
Na Linha do Estoril
A crise petrolífera de 1973 / 74
Setúbal - Santarém  - Setúbal
outras viagens
O jeep do meu pai
"aéreas" aventuras


imbondeiro é o símbolo de Angola, pretendem alguns. Também o pôr do sol nos trópicos é algo de maravilhoso. E então para quem morava à beira-mar! (MCG - 1974.01.31)


Viagem às Mabubas


Fomos às Mabubas. São perto de 70 km de Luanda até lá. Fomos entre os 80 e os 140 km/h. Passamos no Caxito, uma pequena povoação, composta pela igreja, escola, administração, lojas e uma dúzia de casas. O Caxito fica a 61 km de Luanda. As Mabubas têm uma dúzia de casas, lojas, um bar, escola e os armazéns das OP [Obras Públicas]. 

Vi a barragem. Em casa do Sr. Fernandes, funcionário das OP, tomei um refresco porque no bar não havia gasosas. (...) Chegámos a Luanda por volta das 14 horas. Dormi durante quase todo o caminho. De Luanda para o Caxito tem de passar se pela Fazenda Tentativa, onde trabalhava o meu avô Luís. (...) Foi a primeira vez que fui às Mabubas, (...) onde o meu pai vai muitas vezes em serviço. (Diário - 1958.12.31) 




na Fazenda Tentativa, anos 40 do séc. XX - fotos  do meu avô JL Castro Ferreira

 Viagem ao Farol das Lagostas

Às 17 horas fomos ao farol das Lagostas lanchar. Bebi pela primeira vez “Coco-Pinha”. Bebemos champanhe. (...) Subimos ao farol. Percebi como é que a luz do farol anda à roda.

Tive um bocado de medo ao subir e descer as escadas, pois eram em ferro e em forma de caracol. Tínhamos de subir agarrados aos degraus. Foi o 3º farol que vi. O outro foi o da Ilha do Cabo. 

No terraço do farol das Lagostas estava muito frio. Também vi o farol de Ponta Negra, quando lá estive. (Diário - 1959.01.04)




foto de família - luanda cerca de 1952 - esta carrinha Morris, creio que de cor creme, foi o 1º carro dos Nogueira da Silva

Na Ilha do Mossulo



fotos de família

Mais um domingo sem história. Passámo-lo no Mossulo, uma ilha ao sul de Luanda. O meu pai já lá estava desde ontem, com os operários, pois está construindo uma casa de fim de semana que, quando terminada, deve ficar interessante. (...) No regresso, já noite fechada, faltou a gasolina ao barco e andámos à deriva. Como já estávamos perto do cais viram os sinais luminosos e rebocaram‑nos num barco a remos. Se tivesse sido mais ao largo da baía podia ser uma chatice, pois embora houvesse rádio‑transmissor a bordo a corrente poderia arrastar‑nos para o mar alto e até que nos encontrassem passaríamos um mau bocado. É simplesmente inconcebível o desleixo da maioria dos possuidores de barcos de recreio que se fazem ao mar marimbando‑se para as normas regulamentares. Não sei como é agora [1971], mas quando tirei a minha carta de marinheiro amador - que me autorizava a governar embarcações até três toneladas - aquela era concedida após audição duma amena palestra feita pelo Capitão do Porto de Luanda durante três horas, sem mais formalidades ou provas!!! (NID - 1971.08.22)



fotos de família

os amigos próprios de cada um, dos tempos da infância ou da vida de cada, que poderão não ter sido comuns, e os que depois foram surgindo, com o mesmo significado ou com significados diferentes para cada um. Em Luanda, por exemplo, dos amigos, uns iam e vinham, mas outros mantinham‑se. Uns e outros se juntavam periodicamente, para irem à praia, ao cinema, aos restaurantes dos arredores, no Cacuaco ou na Estrada de Catete, nas Ilhas do Cabo ou do Mossulo. (MCG - 1988.07.18/20)


foto de família


o "Rascasso" - foto de família

O meu pai construiu sucessivamente três barcos no quintal, com  ajuda dum carpinteiro e segundo plantas da revista Popular Mechanics. Dos dois primeiros, um foi roubado (estava fundeado na Praia do Bispo), outro foi inadvertidamente queimado por trabalhadores da Câmara Municipal quando no areal pegaram fogo ao lixo recolhido. O terceiro ficou lá, no Clube Naval, quando da independência de Angola. Quando havia barco, ao fim de semana aparecia montes de maralhal e era um vai-vém para a ilha defronte da Praia do Bispo. Antes de haver barco a travessia  era feita nas pirogas dos pescadores. Desaparecido o barco, desaparecia a maioria dos "amigos", que voltavam mal o seguinte era lançado ao mar. Um desses barcos era o "Rascasso". No principio as idas para o Mossulo eram no "Katekero", um transporte público de passageiros, mas depois passámos a ir no barco da família, ao longo da contra-costa. O “Rascasso” foi lançado à água no Clube Naval e a inauguração uma festa com caldeirada de peixe e montes de convidados. Enquanto os seus antecessores não tiveram nome, a este o meu pai deu o dum peixe também conhecido como peixe-escorpião.  


rascasso ou peixe escorpião


Passeio à Barra do Cuanza



Morro da Cruz - foto da Wikipedia

O Morro da Cruz desiludiu me (1). O que eu supunha ser uma elevação não é senão um monte de pedras com uma casa no cimo e uma capela, pelo menos assim o suponho.

Disputava se uma prova de ciclistas na estrada. Foi a 1ª vez  que vi isso. 

Um maluquinho de motorizada cruzou por nós. Ia completamente deitado no selim. Depois não sabem porque morrem. 

FOZ do Cuanza - margens cheias de verdura. Atravessámos o rio de canoa. Estava frio. Montámos a barraca. Passámos lá o dia. Além de nós foram o dr. Antunes e dr. Armindo Gonçalves e respectivas famílias. O sr. Martins e esposa também foram mas não levaram os cães. (s/data (1964 ?) - Diário V)





fotos de família - zé luís e MEN1968 - - rio Cuanza (Angola)

________________________________

(1) Criado em 1977 pelo Instituto Nacional do Património Cultural com o objectivo de dar a conhecer a história da escravatura em Angola, o Museu Nacional da Escravatura tem a sua sede na Capela da Casa Grande, templo do século XVII onde os escravos eram baptizados antes de embarcarem nos navios negreiros que os levavam para o continente americano. 

O museu, que reúne e expõe centenas de peças utilizadas no tráfico dos escravos, está instalado na antiga propriedade do Capitão de Granadeiros D. Álvaro de Carvalho Matoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo. Era filho de D. Pedro Matoso de Andrade, capitão-mor dos presídios de Ambaca, Muxima e Massangano, em Angola, e um dos maiores comerciantes de escravos da costa africana na primeira metade do século XVIII. Falecido Álvaro em 1798, os seus familiares e herdeiros continuaram a exercer o tráfico de escravos no mesmo local até 1836, quando um decreto de D. Maria II de Portugal passou a proibir as colónias portuguesas de exportarem escravos (Wikipedia)





Saímos de Luanda às 4 horas da madrugada, tendo regressado às 22 horas. Passámos por Viana, Catete, Maria Teresa, Dondo, etc.) Almoçámos na cantina da barragem. No Dondo parámos. Fui à capela de lá.
Atravessámos vários rios: Cuanza, Lucala e outros. Visitámos a barragem. As ruínas da antiga povoação estão cobertas de capim. (Diário 1962.06.17)



Foto Victor Nogueira - Cambambe - ruínas da igreja. N Sra dos Remédios - (á porta, minha mãe) = 1964 06 14 

Outra viagem - 7:40 - início da viagem Luanda, Catete, Dondo, Cambambe A mãe conta o filme “O Livro de Saint Michele”
Às 8 horas parámos na estrada. Ouviam‑se os pássaros a chilrear. Ao km 44 a paisagem é a savana, com muitos arbustos. Predominam o capim e as mangueiras. O dia mantém‑se enevoado. Às 8:15 desapareceram as mangueiras e aparecem os imbondeiros e árvores candelabro. O capim encontra‑se queimado. A estrada, embora asfaltada, encontra‑se com muitos solavancos. Estamos a 5 km de Catete. Gosto de ver os imbondeiros ao longe. De quando em quando aparecem uns eucaliptos.
Estamos perto de Catete. Já se avistam sanzalas e bairros para indígenas. Paramos junto a um posto militar de controle. São cerca de 8:20 e a vegetação é rasteira. À beira da estrada e até ao horizonte não se avistam árvores. Passarinhos encontram‑se à beira nas linhas telefónicas, ao longo da estrada. Reaparecem os imbondeiros. Aparecem manchas verdes, não amarelecidas mas sim viçosas.
Às 8:40 passamos por uma sanzala, onde há acácias, palmeiras e coqueiros. Na EN 3 há uma estância, de aspecto acolhedor, à venda. Passamos por um aquartelamento militar, onde há umas carteiras e quadro negro, sob uma árvore frondosa. A E.N. 3 é agora aos altos e baixos. Ultrapassámos um jipão militar, com reboque, no qual iam dois soldados armados com espingardas metralhadoras.
Chegamos a Barraca às 8:50. Paramos numa patrulha militar. Pela 2ª vez perguntam‑nos se trazemos armas de fogo.
Ao km 105 aparecem eucaliptos ao longo da estrada. Passamos por Maria Teresa, povoação pequena, cujos habitantes foram todos assassinados no fatídico mês de Março de 61. Vegetação exuberante.
Ao km 113 há imbondeiros e precipícios. Ao km 126 (9:11) chegamos ao Zenza e entramos no distrito de Cuanza Norte. Passamos pelo sítio onde matabichámos da última vez que fomos a Cambambe. vegetação é luxuriante e há um pequeno rio temporário e imbondeiros. A linha férrea segue do lado esquerdo da Rodovia. Os frutos do imbondeiro fazem‑me lembrar ratos pendurados pelo rabo. Coqueiros. 
   


               Estudos: «Alquimia da árvore» - Pau de Imbondeiro, 2007          
(Eleutério Sanches) no Blog Mukandas do Estoril
.
Os fios que transportam a energia das Mabubas a Luanda passaram para o nosso lado esquerdo. O sol continua encoberto.
A 125 km do Dondo há uma sanzala. São 9:30. Passamos pelo Rio Lucala. O rio Mucoso está seco. A paisagem é de outeiros e há bananeiras.
Chegamos ao Dondo. São 9:45. À entrada há casas género bairro operário. Paramos no jardim, bem arranjado, e com uns bancos rústicos, candeeiros e um coreto, tudo com aspecto antigo, embora arranjado. Ao fundo uma rua, ladeada de casas antigas e árvores frondosas. Do lado esquerdo da praça, a igreja.
A igreja de Cambambe (ou Dondo?) é modesta, sem estilo arquitectónico. À saída encontrámos o Ruca, filho da Beatriz. Está muito sério, a tropa modificou‑o fisionomicamente. O terreno agora é mais acidentado. Demos uma boleia a um tropa até Cambambe, onde chegámos às 10:20. Dentro de Cambambe há um bairro, com casas modernas e arvoredo. O terreno é acidentado e há uma pousada. Há um cinema, com bilhetes a 50$00, às 5ªs e domingos.
Visitámos a barragem, cujas turbinas giram a 230 rotações por minuto. A 1ª fase da construção está concluída. O rio passa a um nível superior ao das turbinas. A água sai pelo descarregador com uma força impressionante, oferecendo um aspecto maravilhoso.
Visitámos as ruínas da antiga povoação de Cambambe. Fomos até à ponte do Rio Cuanza. Almoçámos num restaurante duma estação de serviço FINA, a uns 8 km da povoação: bife com ovo estrelado... e batatas fritas.
Às 14:45 demos início ao regresso a Luanda. No Dondo está sol. Na viagem de ida e volta a Luanda percorreram‑se cerca de 430 km. (Das notas manuscritas da viagem, 1964.06.14)




Em Pointe Noire


Ponta Negra (Pointe Noire) [na Africa Equatorial Francesa] é bonita mas Luanda é mais. Tenho falado francês. Aqui trabalha se todos os dias, até ao domingo. (MEB - 1958.08.12)

Vim a Ponta Negra pela 2ª vez [A  1ª fora nas férias grandes do ano anterior].  Isto é uma cidade muito pacata. A vida é monótona. Espero aqui voltar 3ª vez. A maioria da população é portuguesa. (...) Tenho ido bastantes vezes ao cinema. Aqui num mês fui mais vezes ao cinema do que durante um ano em Luanda. (MLF - 1959.07.27) 

Os pretos, como não sabem o meu nome, chamam me "Le Portugais", tanto na loja como na rua. (...). Um deles disse que eu tinha cara de francês. Que pouca sorte a minha. (MEB - 1959.07.27)

Eu não sei escrever cartas sem ser em estilo telegráfico, pois a minha vida aqui é sempre igual. (MNS - 1959.08.05)



foto de família - em Luanda, com Alice Gaspar e o filho João


Em Ponta Negra a minha vida era quase sempre a mesma. (...) Nas primeiras semanas eu ia brincar a casa do Zé Vieira e vice versa. Geralmente praticávamos tiro ao alvo ou caçávamos pássaros com espingardas de chumbos. Um dia, por certas razões, deixei de ir a casa dele e vice versa (outra vez!) Em casa dele andei várias vezes de bicicleta. 

Lia quase todos os dias umas quatro horas e passava uma ou duas horas a falar francês com o lavadeiro. Ultimamente passava muito tempo na loja a falar francês com os clientes. Algumas vezes ia a casa da Maria Alice, a noiva do Correia Martins. Almocei lá uma vez e jantei no dia em que o C.M. a pediu em casamento. 

À noitinha o sr. Gaspar e o João iam ao Correio e à Livraria e eu aproveitava e ia com eles. Algumas vezes saia também com o João. 

Ao princípio eu dormia com o João, mas depois, por causa dumas discussões que tive com ele, mudei para o quarto do lado. 

Ia todos os domingos à missa, excepto no último. E ia sempre à missa das 8 horas. Só umas duas ou três vezes é que a D. Alice foi comigo.

Assisti aos aniversários do Zé Vieira, duma rapariga conhecida do João. Almocei duas vezes em casa do Zé Vieira. Na véspera da minha partida fui convidado por ele, mas recusei. 

Quase todas as terças feiras ia ao Correio comprar selos e despachar as cartas. Escrevi vinte e uma cartas: cinco ao pai (3), três ao José João (2), oito à mãe (6), duas à Gininha (0), uma ao avô Zé Luís (0), uma à Maria Luísa (0), uma ao Espinheira Rio (1). Os números entre parênteses indicam o número de cartas que recebi em resposta. Não recebi resposta a nove cartas.

Fui a dez matinées e onze soirées. Vi 25 filmes. Todas as terças feiras e algumas vezes à quarta havia dois filmes à noite, num dos cinemas. 

Em Ponta Negra comprei quatro livros e uma lembrança, além de várias coisas que necessitava. (MEB - 1959.09.04)

Li o livro "Fabíola", do Cardeal Wiseman. Trata das perseguições aos cristãos no século IV. À tarde fui ver o filme "Cinq Fusils à l'Ouest", [de Roger Corman - 1955] no Vox. De manhã fui ver a parada militar. Além do desfile dos soldados, desfilaram "jeeps", ambulâncias do exército, camiões de transporte de tropas e carros blindados. Os tanques de guerra não desfilaram. Sobrevoaram a cidade quatro aviões militares. Foram condecorados três oficiais. (Diário II - 1959.07.14) 

Quando tocaram a "Marselhesa" [hino nacional francês] andava eu a passear dum lado para o outro. Só depois é que soube que me devia ter perfilado. (Nota - Diário III - pag. 117) ( 1)

 __________________


(1)   - Da  casa de Ponta Negra pouco me recordo já. Era um edifício grande, com dois pisos e um quintal nas traseiras. No piso térreo os armazéns e a loja e no superior a casa de habitação. Na loja vendia-se de de tudo e ainda hoje o cheiro a panos e a bacalhau traz-me à memória a loja e o seu conteúdo. Pouco mais me recordo para além do que ficou acima registado e nas poucas fotografias. Lembro-me que havia um lavadeiro preto, o que me causou alguma perplexidade então, pois tal tarefa em Luanda era feminina. Com este empregado tinha longas conversas em francês.

Do filme “Guerre et Paix”, de King Vidor (1956) baseado no romance de Léon Tolstoi, impressionaram-me as cenas de batalha com a infantaria avançando em filas cerradas os soldados morrendo como tordos, mas sempre avançando, ao som dos tambores e do troar dos canhões.  Quando na tela Napoleão queimava as bandeiras francesas ao retirar da Rússia, muitos franceses abandonaram a sala.



De Nova Lisboa a Luanda, por terra – Relato I

 515 km
13 de Setembro - 5ª feira

8:00
Saída de Nova Lisboa (Eu, a mãe e o Zé)
9:00
Vale do Queve. Povoação em franco progresso, situada a 1600 m de altitude.
9:25
Atravessámos o rio Lumbuambua.
Chicala
9:40
Chololo. Atravessamos os rios Chilongo e Culele.
10:15 -10:40
Vila Teixeira da Silva - sede do concelho do bailundo. Altitude 1640 m. Vila airosa e electrificada. Tomamos aqui o pequeno almoço.
11:30
Santa Cruz - Plantações de bananeiras. Região montanhosa, coberta de arvoredo.
11:50
Jambacita
12:25
Cachimbombe. Pouco depois encontramos um cortejo nupcial. As duas noivas iam vestidas de branco, seguidas por numeroso séquito, batendo palmas e cantando.
12:35 - 13:40
Hengue - Possui uma modesta pensão estalagem onde almoçámos. A comida não era nenhuma maravilha: sopa de feijão (que não comi), pasteis albardados (muito aldrabados) com salada, arroz branco (parecia cola) com chouriço e galinha. Conclusão - 50 paus
14:30 - 14:40
Namba
14:45
Entramos no distrito do Cuanza Sul. As regiões que estamos a atravessar são muito montanhosas.
16:10
Avistamos uma das aldeias do colonato europeu da Cela.
16:15
Avistamos outra das aldeias.
16:20 - 17:00
Altitude 1300 m. Possui luz eléctrica. Lanchamos no Bar do Passarinho. Bebi uma laranjada e comi dois ovos cozidos e dois bolos. Sede do colonato europeu da Cela. O seu fim é “transplantar para Angola aldeias da Metrópole, sem pretos”.
Cada família recebe casas, terrenos com culturas, bois e tudo o que é necessário até ao valor de 150 contos, que pagará em 25 anos. Aqui se cultivam, por assim dizer, o mesmo que na Metrópole. Cultiva‑se milho, batatas e feijão. A primeira aldeia a ser construída foi a do Vimeiro, que é conhecida por aldeia nº 1. Cada aldeia compõe‑se de 25 a 28 casas, armazém geral, capela, posto de socorros, escola, chafariz com água canalizada. As aldeias encontram‑se ligadas entre si por boas estradas. Até Maio de 1958 gastaram‑se 297 mil contos. As culturas principais produziram, em 1957/58, cerca de 7000 toneladas de milho, 2500 de arroz, 3000 de batatas. Além de outros géneros criam‑se bois, porcos, galinhas, patos e perus. Clima subtropical.
17:03
Santa Isabel - aldeia nº 5
17:10
Carrasqueira
17:15
Avistámos outra aldeia
18:40
Catofe. Há um bom bocado de estrada asfaltada até Catofe. Indústria de lacticínios.
18:45
Quibala - Vila, sede de concelho do mesmo nome. Possui luz eléctrica e campo de aviação. Altitude - 1340 m. Clima subtropical seco. Dormimos numa pensão. O nosso quarto era o nº 4 e era razoável. Comida idem aspas. O jantar foi sopa, que não comi, peixe frito com salada, arroz com bifes e bananas. 150$00

14 de Setembro - 6ª feira

Acordámos às 5:45. Matabichámos. Tome café com leite e pão.
6:40
Partida da Quibala
6:42
Passámos pela missão católica de N.Sra das Dores, a 3 km da Quibala, com oficina de carpintaria e outros ensinamentos aos indígenas.
6:50
Passámos por um cemitério arruinado, que parece muito antigo. Perto havia uma sanzala abandonada.
6:53
Vi mais ruínas, perto da estrada. Árvores de pequeno porte e muito capim.
7:00
A estrada em certos pontos parece‑se com a de Robert Williams/Nova Lisboa, embora a paisagem seja diferente e a estrada não seja asfaltada.
7:05
Saímos das estrada principal, devido a trabalhos nesta.
7:15
Voltámos à estrada principal. A paisagem é triste e o céu está cor de chumbo, dando a impressão que vai chover.
7:20
Tornamos a sair da estrada principal.
7:25
O Sol rompeu as núvens, mas foi logo encoberto. Parece que a natureza se associa ao meu estado de espírito. Está frio e vou gelado. Que diferença entre esta paisagem e a de ontem, com sol, eucaliptos e cedros!
7:30
Voltamos à estrada principal. O céu continua triste e a paisagem desoladora.
7:40
Passamos entre pequenos montes, cujos cumes estão cobertos de nevoeiro, dando a impressão de um gigantesco incêndio.
Paisagem triste, com pouca vegetação e montes pedregosos.
7:55
Está tudo coberto de nevoeiro. Não se vê quase nada.
8:10
Atravessámos o rio LongaFloresta de eucaliptos. Há muitos quilómetros que os não via. Estrada está pronta a ser alcatroada.
8:15
Lussulo - Recebemos correio
8:25
Andámos mais ou menos um km de estrada asfaltada.
8:30
Continua tudo coberto de nevoeiro e a paisagem não é nada encantadora.
8:35
Pequeno troço de estrada asfaltada.
8:40
O nevoeiro está cada vez mais cerrado.
8:42
Saímos da estrada principal.
8:44
Subida íngreme. O autocarro vai a 10 km/hora.
8:50
Entramos na estrada principal. Num desvio estava voltado um camião carregado com sacos de cimento. (APC - 06 - 58)
8:52
Saímos da estrada principal. Subidas e descidas muito íngremes. Região montanhosa, quase sem vegetação.
8:55
Retomámos à estrada principal. O nevoeiro quase que passou. Palmeiras. Estrada pronta a ser asfaltada.
9:05
Estrada asfaltada. Atravessamos um rio.
9:15 - 9:50
Atravessamos o rio Mucongo. Tomamos o pequeno almoço no Munenga. Acabou o pão de ló que a sra. D. Maria Delfina nos oferecera. Bebi uma laranjada e comi pão com manteiga.
Plantações de palmeiras, bananeiras e sisal. Altitude 434 m. Clima tropical muito quente e húmido.
10:00
Palmeiras. Finalmente vi capim verdejante. Já estava farto de capim seco. Começam a aparecer imbondeiros Vegetação cerrada, mas ressequida. Montes cobertos de verdura.
10:15
Montanhas com o cume coberto de nevoeiro. Tal como há horas, tenho a ilusão que as montanhas são presa dum incêndio.
10:20
Atravessamos um rio. No rádio transmitiram uma música dos “Conchas”. É pelo menos a sexta gravação deles que ouço hoje, sendo três de enfiada.
10:35
Seguimos por um desvio devido a obras na estrada principal.
10:50
Voltamos à estrada principal. Aparecem imbondeiros com mais frequência. Atravessámos um rio.
10:55
Rio Cuanza - O seu caudal esta muito reduzido e o leito em grande parte está seco. Ao pé da ponte há diversos rápidos. O Cuanza nasce no planalto do Bié, desaguando ao sul de Luanda. Tem um percurso de 1000 km, 258 dos quais navegáveis, incluindo o seu afluente Lucala.
O Rio Cuanza tem um grande valor económico. No Cuanza médio encontra‑se a barragem de Cambambe. No rio Lucala encontram‑se as célebres Quedas do Duque de Bragança (100 m de altura) Avistamos ao longe Cambambe.
11:10
Passámos perto de Cambambe, onde se encontram as ruínas da povoação do século XVI, e a barragem. Entrámos na EN nº 5.                                              
11:25
Tornámos a avistar Cambambe. Seguimos na EN nº 3, que segue até Luanda. As ruínas de Cambambe são constituídas pela antiga Igreja de N.Sra do Rosário, resto das muralhas e fosso da fortaleza, e ruínas de outros edifícios. Está bastante calor.
11:30 - 12:55
Dondo - Chegámos ao Dondo, o “Ouro Preto” de Angola. Está muito calor, que me incomoda bastante. Na Praça da República há um jardim com um coreto. Naquele, escrito com relva, lê‑se ”Aqui é Portugal”.
Vila, sede de concelho de Cambambe, é uma povoação muito antiga. Possui energia eléctrica. Clima tropical quente. O Dondo foi uma importante povoação nas duas últimas décadas do século passado e princípios deste. Já naquele tempo possuía hospital, bons prédios, ruas alinhadas, etc. Com a construção do CFL (Caminho de Ferro de Luanda) as casas comerciais distribuíram‑se ao longo da linha férrea e a vila perdeu muita da sua importância comercial.
Actualmente, com a construção da grandiosa barragem de Cambambe, a vila desenvolver‑se‑à imenso. Possui ruas arborizadas e asfaltadas. Prédios antigos e modernos. Culturas de palmeira e sisal.
Almoçamos no Bar Passarinho: um prego e uma laranjada. Foi a 3ª vez que estive no Dondo. O ajudante de motorista, o Sebastião, desapareceu, mas por fim lá apareceu todo esbaforido. Meteram gasoil no autocarro.
13:00
Passamos o rio Menoza, cujo leito estava completamente seco.
13:20
Passamos o rio Lucala. Estamos a 160 km de Luanda. Plantações de palmeiras e bananeiras.
13:25
A estrada ora é de pedra britada, ora asfaltada.
14:10
Zenza (do Itombe) - Possui energia eléctrica. Sede do Posto do mesmo nome. Alt. 87 m.
14:12
Atravessamos o rio Dala Gola.
14:30
Entramos no Distrito de Luanda. Maria Teresa - 117 km de Luanda. Culturas de algodão.
14:50
Começam a aparecer os primeiros cactos candelabros.
Barraca - 99 km de Luanda - Plantações de algodão.
15:05
Calomboloca - Alt. 100 m. Povoação com. de 4ª. Aquartelamento militar, com escola ao ar livre, à sombra duma árvore. Carregamentos de algodão. Sanzalas.
A 110 km de Luanda há uma floresta de eucaliptos, ao longo da estrada.
Paragem para os soldados revistarem o autocarro (99 km de Luanda)
15:15
Botomona - O céu está coberto de núvens, que parecem flocos de algodão.
15:30
Catete - 60 km de Luanda. Vila sede do Concelho de Icolo e Bengo. Luz eléctrica. Alt. 70 m. Clima tropical regular. Passámos a 3 km da vila. Zona algodoeira, com uma produção média anual de 4000 toneladas.
Povoação indígena à entrada da vila, de quem vem de Luanda.
15:50 - 16:00
Km 44 - Merendámos - 1 laranjada. Fica no cruzamento da Estrada de Catete com a do Bom Jesus. Possui uma casa comercial. Não é povoação.
16:08
Desvio da EN nº 3, devido a reparações nesta. Neste sítio, quando fomos a Cambambe (em 17 de Julho) estava um automóvel virado, devido à má sinalização do desvio.
16:10
Regressámos à Estrada Nacional. (37 km de Luanda)
16:20
26 km de Luanda. Vegetação rasteira.
16:35
Viana - 16 km de Luanda. Povoação com. de 4ª. Apeadeiro.
16:40
Estalagem do Leão - Pousada a 17 km de Luanda, transformada em aquartelamento militar.
16:45
Grafanil - 7 km - Fábrica de explosivos e aquartelamento.
16:50
Entrámos em Luanda. Paragem no posto de controle militar, perto da F.T.U. (Fábrica de Tabacos Ultramarina)
Paragem ao pé da Esquadra da Polícia Móvel, onde desceram alguns passageiros
17:05
Chegada ao Largo das Ingombotas. Fim da viagem. O pai estava à nossa espera.
NOTAS
Além de nós, vinham no autocarro duas senhoras, soldados, três Brancos e diversos pretos. Eu vim sempre na cadeira do Fiscal. 


De Nova Lisboa a Luanda ~ Relato II 

Saímos de Nova Lisboa às 8 horas em ponto. A viagem decorreu normalmente e, para mim, não foi muito maçadora, pois tive oportunidade de conhecer novas terras e novas paisagens. Pouco depois de passarmos o Vale do Queve um taxi carro ultrapassou nos, parando à frente do autocarro. Era uma senhora que havia perdido a carreira, por chegar atrasada, e apanhara um táxi, que numa espécie de maratona lá nos conseguiu alcançar. Seguimos viagem, já com a tal senhora. Entre o Cachimbombe e o Hengue vimos um casamento de pretos. As duas noivas iam vestidas de branco, seguidas por numeroso séquito, batendo palmas e cantando. 

Almoçamos no Hengue. A comida não era nada famosa e o arroz mais parecia uma pasta -. Ainda estive para guardar um bocado para cola. 

Levantámos ferro, se assim se pode dizer, cerca das 13:40. A paisagem é maravilhosa, em nada se parecendo com a que percorremos no dia seguinte. Mas o melhor é irmos por partes.

A meio da tarde avistámos duas aldeias do Colonato Europeu da Cela,chegando pouco depois à encantadora vila de Santa Comba Dão, onde merendámos. Gostei bastante da vila e tive bastante pena de a [não] ter visitado, bem como os aldeamentos, mas a carreira não anda às ordens dos passageiros e sim estes às ordens daquelas. Paciência. Ainda assim passámos pelas aldeias de Carrasqueira e Sta. Isabel Isto, com os filmes que o sr. Boaventura teve a gentileza de nos mostrar, sempre nos dá uns certos conhecimentos, embora vagos, sobre este Colonato. 

Antes de chegarmos à Quibala passamos por uma povoação de açorianos, o Catofe  Chegámos à Quibala já ao anoitecer, não tendo visitado a vila. No dia seguinte também não tivemos oportunidade ensejo de o fazer, pois às 6:30 já estávamos a caminho. 

Esquecia-me de dizer que pernoitámos na Quibala, numa pensão, ou lá o que é, perto da igreja. O que eu reparei na Quibala foi que há quase mais postos de gasolina que casas (exagero!)

Passámos por um cemitério arruinado, que deve ser do tempo do Salvador Correia [século XVII]. Contudo não o posso afirmar, pois não tive oportunidade (outra vez!) de observar as ruínas de perto. 

Matabichámos no Munenga, onde acabou o pão de ló que trouxemos daí. [Caala] Ainda assim durou bastante (...). Até esta altura parecia que a paisagem se queria associar ao meu estado de espírito, pois o tempo estava muito enevoado. Onde o sol deu um arzinho da sua graça foi no Dondo mas as núvens não devem ter gostado, pois até hoje e mesmo em Luanda tem estado um tempo triste, embora às vezes bastante quente. Almoçámos aqui no Dondo e demos uma volta pela vila. 

Como até aqui e daqui a Luanda, a paisagem é triste e monótona, em nada se comparando com a do Centro. Só imbondeiros, com os seus braços descarnados, e capim, sempre capim. A única nota alegre são as elegantes palmeiras, que por aqui há bastantes, bem como exóticos cactos candelabro. (...) Chegámos a Luanda à tardinha. Estava ansioso por ver o meu pai, mas fiquei desolado com o acolhimento que nos dispensou. Podia ao menos ter afivelado um sorriso e feito um acolhimento mais caloroso. (BGF - 1962.09.25)


De Nova Lisboa a Luanda, por terra - Relato III

A viagem de regresso decorreu bem. Almoçámos no Hengue e dormimos na Quibala e no dia seguinte almoçámos no Dondo. Na quinta feira a paisagem e o dia estavam óptimos. Mas no dia seguinte grande parte da manhã esteve enevoada. À tarde o sol mostrou um arzinho da sua graça. É pena que tudo fosse monótono, com árvores secas, capim e mais capim e imbondeiros. Tudo a condizer com a minha disposição nessa altura.

E cá estou de novo em Luanda. Parece que ainda ontem estávamos nós a embarcar no Infante D. Henrique. No entanto, já lá vai mais dum mês. (ASV - 1962.09.24)
.
  .
Paquete Uíge em que viajei de Lisboa a Luanda em 1950 e de Luanda a Moçâmedes em 1960, com passagem pelo Lobito e por Benguela, cidades que então visitei, além da vila de Catumbela

Pela costa de Angola


Fiz uma viagem de recreio a Lobito, Catumbela, Benguela e Moçâmedes. Não fui a Nova Lisboa, onde contava passar umas semanas, porque a minha mãe teve de regressar a Luanda e daqui embarcou para Lisboa. (NID - 1960.10.25)
Em 5 Ago 60 eu, a mãe e o Zé embarcámos no “Uíge” para uma viagem ao Lobito, Moçâmedes e Nova Lisboa. No dia seguinte chegámos ao Lobito (... que) visitámos de autocarro. Almoçámos no Restaurante Luso. Qualquer que seja o percurso que andemos de autocarro pagamos sempre 2$50. Não há cobradores. (...) A cidade do Lobito é airosa, com vários prédios de dois pisos, mas a maioria são vivendas térreas. Ruas largas e belos jardins. No dia 8 de Agosto, 2ª feira, chegámos a Moçâmedes. (...) Vimos a cidade, que é pequena mas airosa. (...) Visitámos o Forte de S. Fernando, o banco da “má língua", hortas, olivais e o deserto [do Kalahari]. (...) No dia 9 estávamos de novo no Lobito. Fomos a Benguela (bonita a estrada Lobito-Benguela) e a Catumbela. Benguela é uma cidade pequena. (...) Chegámos a Luanda às 16 horas de 10 Agosto e no dia seguinte a mãe seguiu, no “Uíge”, para Lisboa (Diário III - pag. 7/9)
  

Paquete Infante D. Henrique, em que viajei de Luanda ao Lobito 


De Luanda a Malange
350 km







Pungo Andongo (Pedras Negras) - fotos de família


Desta viagem não terão ficado registos escritos, apenas fotográficos. Passámos pelo Dondo e Pungo Andongo (Pedras Negras) entre outras povoações, até chegarmos a Malange. Da viagem lembro-me apenas que numa subida ingreme e sinuosa, dum lado da estrada  morro e do outro precipício, um camião perdeu os travões e veio por ali abaixo, os automobilistas tentando desesperadamente evitar a colisão. O camião acabou por despenhar-se, mas ficou suspenso nas ramagens da floresta, sem haver vítimas pessoais.

Do Lobito ao Huambo

 243 km

A viagem [de barco "Infante D. Henrique)] correu bem. ([1]) Chegámos ao Lobito na 3ª de manhã. Desembarcámos e como não havia lugares nos hotéis acabámos por ficar na Pensão Ideal, que de ideal nada tinha. Era triste, com colchões mais duros que o meu, mosquitos... A comida é que não era má. (MNS - 1962.08.24)
De há dois anos para cá a cidade não se desenvolveu muito. Estão a construir um mercado novo, de linhas modernas, que fica defronte da Pensão. Fartei‑me de passear a pé, tendo por isso ocasião de verificar que há por aqui coisas que Luanda deveria ter: ruas arborizadas, bons jardins e cestos para o lixo (logo as ruas são limpas). Gostei bastante da Restinga, com casas engraçadas. ([2])
Embarcámos no comboio na 4ª feira à tarde. A carruagem estava reservada aos estudantes do Porto e tivemos de procurar outra. Por fim tudo se arranjou. Os estudantes ocuparam o refeitório fazendo dele, alguns, sala de estar. Só conseguimos jantar às 10. (...) A paisagem até Nova Lisboa é encantadora. Como 500 metros para cada lado da linha pertencem aos CFB ([3]) quase todo o percurso até à fronteira está ladeado de eucaliptos [que servem de combustível aos comboios e para fabrico de pasta de papel], segundo o que me disse o revisor da carruagem que durante a viagem me prestou muitos esclarecimentos. Antigamente a linha passava por florestas que foram abatidas para combustível às locomotivas de maneira que a Companhia fez o repovoamento florestal com eucaliptos. (MNS - 1962.08.24) [Orfeão Universitário]



na Caala (Vila Robert Williams) - foto MENS

NOTAS À VIAGEM DE COMBOIO - Foi uma pena a viagem ter sido feita de noite. Como a linha férrea é a subir, abrangem‑se grandes distâncias. À noite as fagulhas oferecem‑nos um aspecto curioso. O pessoal dos C.F.B. é muito atencioso e correcto. No Lépi há um rochedo com a forma duma cabeça de elefante, daí lhe vindo o nome de “TROMBA DE ELEFANTE”. O ponto mais alto da linha férrea fica a 1894 metros de altitude. (...) (Diário III - pag. 17/18 )
Não estou de acordo com o que disse acerca das fagulhas do comboio. Eu fiz a viagem quase toda ou na varanda da carruagem ou à janela. (Eu gosto de ver por onde ando). Tirando a cara e a camisa cheia de fuligem, nada me sucedeu. fiquei encantado com a paisagem., como já lhe devo ter dito. Na verdade, esta é muito melhor que as do Norte [de Angola], que eu conheço. (ASV - 1962.09.24)



[1] - Anteriormente fizera duas outras viagens de paquete, de Angola a Portugal e regresso, em 1949/50, respectivamente no "Mouzinho de Albuquerque" e no "Uíge". Da primeira viagem recordo apenas que não enjoei, enquanto a minha mãe passava os dias indisposta no camarote. Dessa viagem há fotografias do navio a zarpar do Porto de Luanda e minha, num dos decks, muito sorridente. Era o menino querido dos passageiros, por andar sozinho.

 .
Paquete Mouzinho de Albuquerque, em que viajei de Luanda a Lisboa em 1949

[2] - Como não havia quartos no Victoria Hotel, ficámos na Pensão Ideal, que de ideal nada tinha! Era uma pensão triste e suja. Da janela do nosso quarto, que ficava no 2º andar, vê‑se o novo mercado, em parte construído, um belo largo arborizado  e, ao longe, a baía com o seu casario. O Lobito é uma cidade de ruas arborizadas e com jardins bonitos. Por toda a parte existem recipientes para o lixo, que em Luanda fazem muita falta. Tem dois cinemas, o Colonial e o Imperium. O almoço da Pensão era razoável (sopa de puré de feijão, carapaus fritos com feijão frade e batatas com carne guisada). Tencionávamos lanchar no Restaurante Luso, mas estava  fechado por motivo de obras. Voltámos a pé para a cidade. A cidade lembra‑me Pointe Noire.  (...) (Diário III - pag. 13/14 - 1962.08.21) (...) Deixámos as malas na estação e fomos lanchar à pastelaria “Tic Tac” (onde há uma horrível pintura na parede) (Diário III - pag. 15 - 1962.08.22)
[3] - Caminhos de Ferro de Benguela.


  

Uma viagem de avião - Luanda - Lisboa


A viagem correu optimamente, excepto quando sobrevoámos Lisboa. Devemos ter apanhado alguns poços de ar e parecia que o estômago me saía pela boca. Em Kano [Nigéria] apanhei um bocado de frio. (...) Atravessámos montanhas, ou melhor, sobrevoámos montanhas cobertas de neve e o Deserto do Saara.  (...) A comida a bordo era para um pássaro. E paga um sujeito uns poucos de contos para isto.

No aeroporto estavam à minha espera a Bita, a Maria Luísa e a minha madrinha [Cristina Santos] (NSF - 1962.12.28)

          Em Kano, (Nigéria), onde chegámos de madrugada, (de Luanda para Lisboa), tive ocasião de ver que o pouco inglês que sei não servia nem para pedir uma chávena de café com leite. O que me salvou foi a hospedeira do ar, pois eu e o criado não nos entendíamos.

Gostei bastante da viagem. Para mim é um prazer andar de avião. Em Kano apanhei um bocado de frio. (Diário III - pag. 56 - 1962.12.15)






O avião, o Super Constelation Infante D. Henrique, descolou [de Lisboa] à meia noite, com um atraso duns 15 minutos. ([1]) Foi neste avião que em Dezembro último vim para a Metrópole. Até Bissau, onde desembarcaram grande número de passageiros, o avião ia cheio. Não dormi mais dumas três horas. O barulho dos motores era ensurdecedor, mas depressa me habituei.
Deram um pequeno almoço antes da aterrisagem em Bissau. O aeroporto é simples, mas pelo que sei um dos melhores de África. Vi lá dois aparelhos de radar do exército. Estava calor.
Como já íamos atrasados não parámos em S. Tomé. Tive bastante pena de não ver o tio Jorge. A partir do meio dia a viagem tornou‑se deveras monótona. Conversava com o meu companheiro de viagem, um funcionário de Luanda, via a paisagem (só núvens ou mar) ou lia ("O Céu Não tem Favoritos", de Maria Remarque) É um pouco filosófico, mas não desgosto. Assisti ao nascer do sol, visto de 3 000 metros de altitude. É um espectáculo deslumbrante. Começa com um pequeno foco vermelho, que se alastra, como um grande incêndio (as minhas notas foram tomadas às 6 h 15 m de Lisboa). O céu até há pouco estrelado, mantém‑se escuro, talvez azul ou preto. Por fim todo o horizonte está vermelho e começam a distinguir‑se as núvens, num contra‑luz soberbo.
Chegámos a Luanda às 19 h 35 m (hora de Luanda). A cidade vista de cima é pouco iluminada. Mas de lado, parece um cintilar de pedras preciosas. Será um aspecto maravilhoso de Luanda que conservarei muito tempo. Um pôr do sol visto de avião também é um espectáculo agradável. (1963.11.24/26 - Diário III)



[1] - A primeira vez que andei de avião - avioneta - foi de Luanda para o Uíge, talvez em 1949. Dessa viagem recordo apenas um painel cheio de mostradores, o da cabine do piloto, com quem fiz toda a viagem, segundo a minha mãe. Gosto de viajar de avião, embora uma das viagens tivesse sido muito aborrecida, por alturas da guerra em Angola, quando os países africanos proibiram o sobrevoo dos respectivos territórios pelos aviões portugueses. Estes tinham de bordejar a costa africana. Salvo erro fizemos escala em Cabo Verde, de cujo aeroporto não podemos sair, fortemente guardado pelas forças militares. 19 horas de avião, sempre sentado, sem poder mexer, salvo nas idas ao WC, é obra!
.

em Luanda na Praia do Bispo - foto de família

De Lisboa ao Porto

274 km
Falando como o senhor de La Palisse diremos que de Lisboa ao Porto podemos ir utilizando variadíssimos meios de transporte: barco, avião, comboio, automóvel...
Ou, o que será uma grande estafa, pode ir-se caminhado pelo seu próprio pé, se escravos não houver para transportarem a liteira. E a verdade é que há quem o faça, em magotes mais ou menos alegres ou macerados, peregrinos a caminho de Fátima, pela berma da estrada, alguns de mochila às costas e bordão na mão, confluindo para um 13 de Maio a 13 de Outubro, datas das aparições da Senhora que tomou o nome da terra, embora tenha aparecido na Cova de Santa Iria.
A viagem de comboio é descrita mais adiante. De automóvel, leva umas horas, sem necessidade de fazer testamento prévio, como no tempo do meu avô Luís, que me dizia que a viagem duraria... cinco dias (e cinco noites). Indo de automóvel, houve tempo que se poderia ir alongadamente pela costa, ou combinadamente, ao longo do Tejo para norte, depois pelo interior, inflectindo quase lá em cima para o litoral até ao Porto. Era o tempo da Estrada Nacional nº 1, quando a autoestrada ia apenas até Vila Franca de Xira para quem rumasse ao Norte, ou até aos Carvalhos, para quem do Norte quisesse vir por aí abaixo. Pela costa ou pelo interior, ambos os caminhos rumavam a Coimbra, a meio caminho com alguma boa vontade.
A viagem era uma festa, uma canseira ou uma sensaboria. Dependia do clima ou do tempo disponível. Passava‑se pelo interior das povoações, parava-se para meter gasolina, para comer ou devido aos engarrafamentos provocados pela estreiteza das vias, pelas carroças puxadas por animais ou devido a qualquer acidente rodoviário. Se tempo houvesse era mais demorada a paragem nas povoações ou pelo caminho para admirar a paisagem ou para pequenos desvios.



foto Victor Nogueira

A chegada a Santa Apolónia era precedida pela lezíria, por vezes inundada, pelo rio Tejo aqui ou ali entrevisto, até começar a paisagem industrializada e desgraciosa desde Vila Franca de Xira, e zona oriental de Lisboa, com o seu emaranhado de linhas férreas. Em Vila Franca de Xira a ponte deixou de ter portagem para quem a atravessasse, mas nem os ventos do 25 de Abril lhe mudaram o nome como à de Lisboa. Esta deixou de ser de Salazar, mas aquela continuou a ser do Marechal Carmona!
Mas a caminho do Norte, Alenquer era uma visão agradável, as casas pela encosta acima como se fora uma cascata, à noite iluminada e, no Natal, com gigantesco presépio cheio de luz. Depois acabava a planície e lá se andava às curvas e contracurvas ou no sobe e desce das serras de Montejunto e de Candeeiros. Passava-se por Rio Maior, mais tarde conhecida como a capital da contra-revolução, com a célebre moca para espancar os comunistasAqui começa Portugal, isto é, acrescento, para quem fosse para Norte, porque para quem demandasse o Sul ali... acabaria Portugal e começariam a moirama e os infiéis. Mas rumando a Norte, a curiosidade era desperta pela Venda das Raparigas, pouco antes de Alcobaça ou da Batalha, pontos de breve paragem e visita se tempo ou inclinação para isso houvesse. e as placas de sinalização em Rio Maior pichadas com "Aqui começa Portugal", isto é, acrescento, para quem fosse para Norte, porque para quem demandasse o Sul ali... acabaria Portugal e começariam a moirama e os infiéis. Mas rumando a Norte, a curiosidade era desperta pela Venda das Raparigas, pouco antes de Alcobaça ou da Batalha, pontos de breve paragem e visita se tempo ou inclinação para isso houvesse. 



Foto Victor Nogueira - o Rnault 5 em Setúbal

Mas a paciência perdia‑se de vez em Leiria, sempre uma estafa para atravessar, o trânsito condicionado pela estreiteza da ponte sobre o rio Lis quando não agravada por ser hora de ponta. Um breve relance ao castelo com a sua varanda de arcos ogivais, lá em cima, e ala que se vai fazendo tarde. Ao lado da estrada o castelo de Pombal chamava a nossa atenção, altaneiro no cume do monte, mas Conimbriga merecia mais um desvio e uma paragem para admirar as ruínas da velha cidade romana mais as muralhas que ainda existiam e o jardim dos repuxos.
Após Condeixa, finalmente Coimbra, reconhecível ao longe pela Torre da Universidade, lá no cimo, no local onde noutras terras está o castelo. Na Mealhada havia sempre muitos camiões e automóveis parados, para que os seus ocupantes comessem e bebessem nos restaurantes à beira da estrada, que não se pode impunemente andar com a garganta seca ou a barriga a dar horas. Seguiam‑se Malaposta (do tempo das diligências), Águeda, Albergaria‑a‑Velha, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira (que alívio, estamos quase a chegar!), Picôto e - finalmente - a então mini auto-estrada, cinco km dos Carvalhos à capital do Norte, onde se entrava atravessando a elegante ponte da Arrábida sob o rio Douro, sempre cheio de água mas sem ser o mar espelhado do enorme estuário do rio Tejo, com a ponte metálica de D. Luís para montante, que desde o século XIX une Gaia ao Porto, graças ao Engenheiro Gustave Eiffel.
Hoje a viagem faz‑se por auto‑estrada e o que se ganhou em comodidade e rapidez nem sempre compensa a monotonia e o passar ao largo destas povoações, afastadas porque para elas aceder é necessário procurar um acesso e por vezes andar muitos km pela estrada velha, para norte ou para sul. (Memórias de Viagem, 1997.11.16)


  
Foto Victor Nogueira - Rui e Susana, no comboio para o Porto (férias no Mindelo)  


fotos Victor Nogueira

Viajando pela linha do Norte


1. - Às 8:30 tomámos o rápido da linha do Norte. Caía uma chuva miúdinha e no céu via-se um lindo arco‑íris. Matabichámos no bar da estação de Santa Apolónia, em, Lisboa, que é original, com motivos do caminho de ferro.
À saída de Lisboa passámos por um aeródromo militar. Monte Real era sobrevoada por aviões a jacto, da Base Aérea 5. A primeira paragem foi em Santarém. As cadeiras da automotora são mais espaçosas que as do rápido. Às 9:40 chegámos ao Entroncamento , a terra dos fenómenos. Ia tão entretido a ler que, entre Fátima e Pombal, passámos por um túnel sem eu dar por isso.
Antes de Pombal passámos por um outro que estava em obras. Nesta altura chovia. Às 11:10 chegámos a Alfarelos e pouco depois à estação de Coimbra B. O rio Mondego estava quase seco - e é um rio importante do continente! Passámos por Pampilhosa da Serra (11:43), Cúria (11:50), Aveiro (12:18), Estarreja, Ovar, Espinho, Granja (13:05), Vila Nova de Gaia (13:25), Campanhã e S. Bento (13:50). Na nossa carruagem seguiam 4 indianos que deveriam ter saído em Coimbra, mas por ignorância (passaram lá sem saber) não o fizeram e resolveram seguir até ao Porto. Muitas das estações do percurso tinham bonitos jardins. (1963.09.11 - Diário III)
2. - No comboio, a caminho de Lisboa, pedi a um dos meus companheiros de viagem que me emprestasse as "Modas e Bordados" para folhear, pausa na conversa que mantínhamos desde o Porto. Agora o dia está maravilhoso e cheio de sol. (No Porto chovia a cântaros) Há já um bom bocado que deixámos Coimbra. O comboio desliza rápido, tac-tac, tac-tac. deixando para trás campos verdejantes, olivais e vinhedos, pinhais, alguns deles alagados, e casas dispersas na paisagem. Os meus vizinhos de compartimento dormitam, enquanto a sineta toca para o almoço. Daqui a uma hora chegaremos a Lisboa. (...) Os companheiros de viagem: a sra. D. Alice, ar aristocrático, minha velha conhecida do Porto, cheia de vivacidade, apesar da idade, rosto quadrado, sanguínea. O outro, desconhecido, deve ser um homem ligado à actividade comercial, pelo modo como veste e pelos apetrechos: óculos e lapiseira no bolso do lenço no casaco, pasta. Veste com pouca elegância, fato de um tecido acastanhado mesclado de azul e vermelho, colete cinzento de malha, gravata preta com duas listas - uma encarnada e amarela, estreita, outra mais larga, verde, junto ao nó. Sapatos castanhos, mal engraxados. Afinal a pasta continha um farnel embrulhado num guardanapo dentro dum saquito de plástico, que ele come, e que me ofereceu. (Isto faz‑me lembrar que tenho de ir ao bar comer uma sandes).
A D. Alice, o [jornal] "O 1º de Janeiro" nos joelhos, dormita, a cabeça apoiada na mão. Queixa‑se do frio, mas aqui para nós ainda bem que desligaram o aquecimento, pois isto já era um forno.
 Chegamos ao Entroncamento são 12:40. Por causa das obras na linha, penso eu, o comboio vem atrasado. As casas, blocos uniformes, regularmente monótonos, as linhas, cruzando‑se e divergindo, cheias de carruagens, vagões e locomotivas, são uma nota diferente na paisagem, que desde há uns bons quilómetros é mais árida que no princípio da viagem. A linha férrea é uma ponte nos campos alagados, com água barrenta, levemente ondulada. Solitariamente, pequenas ilhas, renques de árvores de ramos desfolhados, cujos nomes desconheço. Já não se vêm no entanto árvores cortadas e oliveiras deitadas no solo, raízes desentranhadas pela força dos ventos, que no Porto e nos últimos dias sibilaram noites seguidas, infiltrando‑se pelas frestas das portas e janelas. Gostaria de andar num barquito por esses campos alagados. (NOT - s/data 1972/73 ?)

3. - A viagem decorreu bem, embora maçadora. No compartimento, além de mim, viajavam dois rapazes sisudos e calados e uma rapariga, que não tinha culpa de ser feiosa e fortezita! Ia mesmo sentada à minha frente mas, contra o meu costume, não trocámos uma única palavra. Pensando bem, ela não era tão feiosa como isso, até tinha uns lindos olhos azuis e um sorriso bonito. Só sorriu uma vez, quando eu, com um ar muito circunspecto, fingia admirar a paisagem; eis senão quando aparece um malandro dum comboio, sem avisar, às apitadelas, que me fez dar um salto na poltrona. A muito custo lá consegui assumir um ar de dignidade ofendida, embora a vontade de rir fosse grande. Bem, lá chegámos a Lisboa, onde chovia a potes. Táxis, nem sombra; os que apareciam eram logo anexados. Mas... enquanto há vida há esperança e sempre apanhei um! (ASB - 1968.04.19)





na Amareleja - foto MENS


Pois é, isto de um tipo ser conhecido tem as suas consequências: montes de malta e quase todo o 4º ano sabem que andei pela Amareleja em companhia da amada! Nunca supus que as notícias fossem tão rápidas. E a "Ritinha" muito solícita em saber pormenores da menina e como fora arranjar uma amarelejense. ("Ora, muito fácil, não costumo perguntar previamente ás pessoa com quem me relaciono donde são")  (MCG - 1973.03.09)

A acreditar [no sr. Coelho], entre outras coisas, os(as) amarelejenses são libérrimos em matéria de relações e tolerância ("Tudo boa gente e amiga de receber") Ah! Ah! Ah! ("Mas parece me que lá pela Amareleja não apreciam muito a MA " [ao que me responde: "Bem as pessoas não vêm com bons olhos que ela meta o namorado lá em casa a qualquer hora, mas ninguém liga que vá com ele para qualquer lado, de carro ou que vão passear pelo campo, como vocês fazem". Ah! Ah! Ah! (MCG - 1973.03.09) 

O quarto onde tenho dormido em casa do senhor Cachopo - o da frente - é barulhento. Toda a noite se ouvem motorizadas roncando e homens cantando com todas as cordas vocais desafinadas. Numa das vezes ouvi cantar os versos duma das canções dos "ensaiados", no Carnaval. (MCG - 1973.04.02)

Fui ontem aquela cidade mumificada (-museu, reza a propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG - 1973.09.08)

(...)   Podia falar te da tristeza sem sentido desta vida que levo. Da necessidade de agarrar o presente com ambas as mãos. Do nenhum entusiasmo ao avistar anteontem à noite as luzes de Évora. A viagem [de regresso da Amareleja] foi rápida, com minutos de silêncio, outros de conversa animada e outros de busca desesperada de palavras, no negrume da noite, com a estrada deslizando sob nós, o rádio transmitindo música e as pontes aparecendo bruscamente na curva da estrada, dois parapeitos brancos, esguios, varridos pelos faróis do automóvel. Chegados ao burgo, deixada a Marília e [outro] em casa, foi a busca dum lugar para estacionar. As aulas recomeçaram, mas ... quero ir me embora. É quase uma obsessão. Évora e o Instituto não são apenas o negativo.   (MCG - 1973.11.20)


Ajoujado de sacos de viagem, ele apeia‑se no largo da aldeia, circundado de casas de dois pisos, feias como não são as que conhece doutras terras alentejanas. É um rapaz moreno, em cujo rosto avulta um enorme bigode. Olha em volta e a cara ilumina‑se (ou antes, as guias do bigode permanecem imóveis, enquanto o rosto se abre). Seguimos o seu olhar enquanto ele atravessa a praça e entra no largo [do Regato], cheio de homens gozando a aragem quente do entardecer, falando em todas as coisas sem interesse: a última história do velho sargento mai‑la professora (aquilo é que foi um forrobodó!), (2) de olhinhos "concupiscentes" e língua ferina - guardado estava o bocado.... Mas estas e outras histórias não as ouve o moço que agora atravessa o largo, algo atrapalhado pela multidão - forasteiro em terra estranha - até pousar os sacos e abraçar, com muito carinho, a rapariga que se aproximara dele. Os homens do largo abaixam‑se para apanhar os queixos que tinham entretanto deixado cair ao chão e recolhem os olhos às órbitas. Houve um, coitado, a quem eles saltaram com tal força e rapidez que as lunetas ficaram apenas em cacos de lentes agarrados aos aros (como irá ele logo ver o teleteatro?)

Abraços, ambos entram em casa e aqui o escriba interroga‑se se não deverá retirar‑se discretamente, não vá perturbar a sua (deles) intimidade. Mas tal discrição é desnecessária, porque a D. Maria, senhora muito simpática (quando não está com a mosca) lá está ao cimo das escadas, para zelar pela moral e bons costumes. Portanto continuamos a seguir o parzinho que vai retirando da mala livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros,... bolas, chega! Eles riem‑se às gargalhadas e dão‑se mais outro beijinho.
.
No dia seguinte, ela aparece roufenha, quase afónica, tossindo cavernosamente, enfim, parecem o espelho um do outro. Os homens no largo têm mais uma história e um vale de lágrimas corre pelas escadas abaixo e a toda a pressa vêm barquinhos que passeiam pelas ruas da Nova Veneza, em noites de luar com alvoreceres de rouquidão! (MCG - 1973.08.02)


"Escritos em uma Noite de Verão" - Conheci a Ana SorRiso dos Olhos Grandes e o Zé Honrado naquela aldeia grande que é a Amareleja, onde existe um Largo do Regato que se não vislumbra e morava a Maria Papoila, no 1º andar por cima duma loja, numa casa sem portas interiores.  No tempo da outra senhora era aquela uma aldeia aberta, com os bailes na Sociedade e os longos passeios dos casalinhos ao longo das estradas que dela partiam ou para ela convergiam. Tinha a Amareleja muita gente conhecida: a Marília (muito bonita) e o tio, o sr. Coelho (da oposição ao regime e dono da farmácia), o Diogo (meu colega na pensão da D. Vitória), a Adélia, o sr. Guerreiro (regedor da aldeia) e a D. Marcelina (pais do Diogo e da Adélia), a Ivone (muito faladora, à espera do pretendente e do casamento que tardava), a D. Manuela (dona de uma loja e, como a anterior, professora), para além do casal velhote com a mercearia, [o senhor Cachopo] no largo da igreja arruinada [Torre do Relógio], em cuja casa ficava aos fins de semana, com o motorista da camioneta da carreira. Seguramente que havia mais gente, como a minha colega do Instituto, simpática, cujo nome esqueci e que por vezes me dava boleia [Ana], ou o Chico (Lucas] Honrado, que também fora meu colega. (AMC) 


 Évora - Lisboa - Évora

1. - Custou, mas na camioneta, rumo a Lisboa, senti me renascer, como se tivesse saído dum opressivo ambiente tumular. Esta Lisboa do miúdo que choraminga. E do velhote, límpidos olhos azuis, humildemente vestido mas não enxovalhado, que é brutalmente arrastado para o passeio por um pai rude, exaltado, mal barbeado, que lhe torceria o nariz, o esmigalharia, lhe daria duas bofetadas,... se ele não estivesse bêbedo.

Enquanto aquele retorquia: "Estavam a maltratar os pombinhos", sem muita firmeza, de olhos perdidos sabe Deus onde Ou do miúdo que me aponta uma pistola: "Mãos ao ar", num Chiado repleto de gente azafamada. Que é admoestado por uma mãe derretida. Que se perdeu no rio das gentes que sobem ou descem. Das duas "meninas bem" que, especadas no passeio qual escolhos, lançam olhares furibundos ao pirralho esfarrapado e sujo que lhes aponta uma espingarda de lata. Do café Nicola, donde sou desalojado sem cerimónia, pois um "garoto" e um "croissant" não permitem a ocupação indefinida de uma mesa para escrever, especialmente à hora de almoço. Dos vendedores ambulantes, que jogam ao corre corre com os polícias, de tabuleiros cheios de quinquilharia, jogando ao passo passa com os automóveis.(NSM - 1968.12.27)

2. - Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora. Após alguns infrutíferos telefonemas feitos dum barzeco existente junto à estação, consegui arranjar um quarto na Pensão Eborense. (...) Sabendo que a pensão ficava a cerca de 1 km e porque a noite estava amena, pus o saco da TAP a tiracolo e pés a caminho. (...) . (NSF - 1968.09.09)

3. - De Évora para Lisboa pode ir-se por estrada e por caminho de ferro. De camioneta ou de automotora, o tempo gasto no percurso é sensivelmente o mesmo: umas 3 h 30 m. A camioneta, embora mais enfadonha, é mais barata. A empresa [João Cândido Belo] concede cartões de estudante que permitem obter 50 % de desconto entre a localidade de residência e a de estudo e vice-versa, no meu caso entre Lisboa e Évora. O comboio em 1ª classe fica à volta de 70 a 80$00 e a camioneta, com desconto, 20 a 30$00. (NSF. 1970.05.17)  
4. - Tac tac - tac tac - tac tac, cá vou eu a caminho de [Évora] num comboio ronceiro que espero chegue à tabela. Ao chegar, às 21:30, a falta de táxis e o excesso de "chegantes" fizeram com que o Régua e eu pegássemos nos respectivos sacos e mochilas rumo, um ao fim da Rua dos Mercadores, outro ao princípio da do Raimundo. Embora os sacos não fossem pesados, são incómodos de transportar, pelo que a meio do caminho eu protestava contra as minhas brilhantes ideias e murmurasse para com os meus botões acerca da minha fartura de mim e da muita paciência que eu tenho para aturar-me. (MCG - 1973.01.04)

5. - Às 14:30 apanharei [em Évora] boleia do Pintassilgo (e da miúda) rumo a Setúbal, onde apanharei a camioneta para Cacilhas, aqui o ferry-boat para o Cais do Sodré e lá o comboio para Paço de Arcos. Em lá chegando à estação, olhos para as malfadadas escadas [escadaria], atravesso a linha, subo as e ala pela Rua Conde de Alcáçovas abaixo, por entre as árvores que a ladeiam até ao fundo, onde viro à esquerda dando de caras com o nº 1 da Rua de Macau. (1973.08.03)



Pelo  Alentejo, de comboio


1. - Apanhei o barco para o Barreiro às 19 h 30 m e depois de meia hora de secagem na outra margem, o trem lá partiu às 20 h 30 m. Na carruagem, para além de mim, uma rapariga magra com um chapéu de palha roxa ou lilás, de feitio esquisito (parecia um outeiro circundado por uma vala, pois as abas estavam viradas para cima; muito vagamente assemelhava se ao barrete dos marinheiros rasos), um padre (que saiu a meio do percurso) e um rapaz de camisola branca (que seguiu para além da Casa Branca). O comboio parou em tudo o que era estação ou apeadeiro. A luz na carruagem era para alumiar mortos, pelo que nem ler pude. Só quase no fim da viagem descobri como acender as lâmpadas individuais, por cima de cada poltrona. Chegámos a Casa Branca cerca das 23 h 15 m. Aí tivemos de mudar para a automotora, pois o comboio seguia para Beja. Que transição entre a carruagem deste e o compartimento daquela (viajava em 1ª classe). Um forte e incomodativo cheiro a gasóleo, as poltronas cobertas com panos sujos, amarfanhados, mal colocados. Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora.(NSF - 1968.09.09)

2. - "Atenção, senhores passageiros, o comboio estacionado na linha nº 2, com destino ao Alentejo, vai partir dentro de momentos." A voz no alto-falante cala-se. Devem ser quase 19:05. Ei-las. Um, sacão, um rolar suave, cada vez mais rápido e [compassado], tac-tac, paredes, comboios, postes, linhas e luzes deslizando pela janela. O cobrador vem "revisar" os bilhetes (ena, que rapidez!). Mudo de lugar, pois o revisor diz me que não pode ligar a luz por cima de mim; entretanto dois passageiros foram recambiados para a 2ª classe. Perto de mim um homem lê um livro de histórias aos quadrinhos, tira o casaco e dá-me uma ideia que aproveitarei daqui a pouco, pois está calor. Estou com sede e é pena o comboio não ter bar. A luz da carruagem - que sacoleja muito - é fraca, quase de velório.

(...) Apitam comboios e ouvem se vozes altas. São 21:05 em Casa Branca, onde acaba de chegar o comboio de Beja. As carruagens para Évora já estão separadas das que seguirão para aquela cidade. O cais está molhado e deve ter chovido para estas bandas. O bar da estação continua a mesma confusão no atender dos clientes, que sempre lhe conheci: a malta amontoada ao balcão corrido de mármore, molhado do pano gorduroso que o "limpou". O homem afadiga-se a vender bifanas, cervejas, refrigerantes e cafés. Atende-nos sem critério, na sua calma fleumática, atropelando a ordem de chegada. Os fregueses impacientam-se, nervosos, um olho no patrão, outro no comboio, não vá este desandar inopinadamente. Finalmente o comboio põe-se em marcha e balança mais que navio em mar tempestuoso (NID - 1974.01.09 - ?) (1 )

(1) - As viagens faziam‑se em carruagens velhíssimas, como refiro a propósito doutra viagem (MCG - 1973.01.04). Carruagens sem aquecimento, com bancos corridos, cada um com portas laterais nos extremos, como se vê nos filmes dos anos 40. Havia dessas carruagens também na linha Barreiro - Setúbal. Quando a viagem para Évora era nocturna, na Casa Branca havia apenas uma sala gélida à espera para recostar o corpo e um bar fechado para aconchegar o estômago.

Pelo Alentejo,  sobre 4 rodas



foto Victor Nogueira

1. - Aqui estou na Praça Dr. Oliveira Salazar, no Vimeiro, sentado num banco. São 19:45 e ouve se a algazarra das crianças pelas ruas e das mulheres falando. Passam miúdas, normalmente aos pares. No alto a lua é quase um círculo prateado, ao entardecer que vai esfriando. O Citroën 2 cavalos do Fialho está aqui ao pé. Daqui a pouco tenho de ir até à venda, ponto de encontro. Não me apetece estar lá, forasteiro. Antes esta quietude, esta serenidade do entardecer. Pássaros chilreiam e dois cães param além na esquina. Não é a primeira vez que estou nesta aldeia, tão grande ou maior que a Amareleja. Estou agora a fazer inquéritos à vida das famílias. (...) [Entro na taberna]: pedra ao longo das paredes, na altura de um homem, pintada de verde, um balcão corrido azulejado da mesma cor, uma ventoinha, um televisor e um frigorífico. Prateleiras cheias de garrafas, rebuçados e tabaco. Mesas oleadas e cadeiras, tresandando e brilhando de gordura. Em pé ao balcão ou sentados às mesas, homens que não primam pela elegância no vestir, bebem o seu copito e trocam o seu dedito de conversa. 

Só fiz um inquérito hoje. Um velhote de 72 anos, cabo reformado da GNR e ex-comandante do posto do Vimeiro. Muitos elogios ao Marcelo [Caetano] (já o carcereiro de Arraiolos me dissera: "Deus o conserve por muitos e bons anos"). Um casal de velhotes simpático, à moda antiga, que nunca bateram nos filhos, que no entanto tinham de andar na linha, nada de saídas nem bailes. (MCG - 1973.03.16)


foto Victor Nogueira - em  Lisboa 1978 12

2. A nossa viagem da Salvada para Lisboa correu bem. A paisagem era bonita e vimos grandes arrozais e salinas. Das povoações que atravessámos apenas retive Alcácer do Sal com o seu castelo no cimo do monte, a vila debruçada à beira-rio; um quadro lindo. (MCG - 1974.01.02)

3. - A camioneta vai daqui a pouco para Montemor[-o-Novo]. Está sol e daqui te envio saudades. Já engraxei os sapatos e estou mais apresentável. (MCG - 1974.10.28)


foto victor nogueira - rio sado em alcácer do sal, que foi porto fluvial e praça forte muçulmana antes da reconquista cristã


Apaixonei-me por Alcácer[do Sal] desde a 1ª vez que a avistei, vindo do Sul, debruçada sobre o Rio Sado, onde se reflectia. Gosto das suas ruas que vão subindo até ao Castelo Mouro, outrora arruinado e hoje em recuperação para ser mais uma pousada.  (...)

É uma povoação que se desenvolveu ao longo do rio, subindo por ruas íngremes, por escadarias ou atravessando arcos. Duas ruas paralelas ao rio, na parte baixa, uma marginal, outra interior. No castelo arruinado, ninhos de cegonhas.



foto Victor Nogueira - o Renaul 4 em Évora, num pic-nic

Santa Susana pequena aldeia, onde parava a camioneta a caminho do Torrão, de casas brancas com rodapés, molduras e cunhais pintados de azul e uma igreja no topo do largo arborizado. Foi uma terra com alguma importância, com a sua sala de cinema, entretanto encerrada devido à concorrência da televisão e à emigração, como em muitas aldeias, vilas e cidades por esse país fora. (Memórias de Viagem, 1997)

4. – Montemor-o-Novo - É agradável a paisagem de quem vem de Alcácer do Sal, atravessando o rio Almansor, numa curva do caminho encontrando‑se verdejante morro e no cimo as muralhas do castelo. (Memórias de Viagem, 1997)

5. - Na camioneta para o Sabugueiro, aguardo a sua partida, no meio da vozearia fina da miudagem que a enche, de regresso a casa. (1973.11.08)








fotos Victor Nogueira - junto à Herdade da Barrosinha, para seguir pelo trilho na margem do Rio Sado até ao Monte da Arouca

6. - Ao Monte da Arouca [UCP Soldado Luís] podia chegar-se a partir de Alcácer [do Sal] subindo o Rio Sado, estreito e de margens verdejantes.


foto Victor Nogueira . o Renaul 4L no Monte da Arouca

Estamos a meio da tarde de domingo, aqui no Monte de AROUCA onde a Celeste dá aulas, uma herdade enorme que quase parece uma aldeia, agora abandonada (quase) pela crise da agricultura e da política dos agrários. O monte fica junto ao rio Sado, a 10 km ao sul de Alcácer do Sal e a 2 horas de camioneta de Lisboa. No meu colo está a minha amiga Eva, filha duma trabalhadora [Aciolinda], e que tem 3 anos. Uma "mulherinha", como me diz. A mãe dela aquece se ali ao lume, enquanto a Celeste lê e a mãe arranja as azeitonas que colheu ontem à tarde. (NSF - 1974.11.27)

Está um dia cheio de sol, quente na rua, fresco em casa. Os pássaros chilreiam lá fora, por entre o rumorejar da folhagem das árvores. Estou na Arouca, mas só amanhã começo a trabalhar, como agente do Instituto Nacional de Estatística (...) no Distrito de Setúbal. Este mês tenho cerca de 90 inquéritos, a maioria na península de Setúbal: cidade, Sesimbra, Seixal, Barreiro, Alhos Vedros, Montijo e Alcochete. (NSF - 1977. 11.15)

Um Monte nos arredores de Alcácer, de acesso difícil e perdido nas brenhas. (MCG - 1988.07.17)

foto Victor Nogueira

Ao Monte da Arouca podia chegar-se a partir de Alcácer subindo o Rio Sado, estreito e de margens verdejantes. Em Vale de Guiso, um cais de madeira. Para a outra margem, para Arouca, o acesso era mais difícil. A ligação entre as duas margens fazia se por barco, sendo necessário muitas vezes chamar o barqueiro. Daqui, pelo meio dos arrozais, a pé, com o carrego na mão, às costas ou à cabeça, chegava se ao monte, a uma certa distância.

Outros dois acesos eram por terra, de automóvel, ou a partir da Herdade/Estalagem da Barrosinha, seguindo por uma estreita estrada à beira rio, que nalguns pontos derrocava no inverno, impedindo o acesso por automóvel. Restava o outro caminho, pelo meio do montado e seguindo estreitos e múltiplos carreiros, quase intransitáveis no inverno, salvo para os jipes, carreiros sem sinalização sendo a escolha certa fruto da memória e da experiência.


foto Victor Nogueira

O Monte da Arouca era quase uma aldeia, com as casas dos trabalhadores rurais, de telha vã, chão de lajedo ou cimento, com dois quartos e uma sala comum, esta com lareira, sem portas interiores e quase sem janelas. Para além desta a casa grande dos agrários, no caso os Lince, a escola primária, com tanque de rega adjacente, o armazém (com lajes com inscrições, talvez provenientes dalgum cemitério).

Tirando a casa grande, as outras não tinham instalações sanitárias; as necessidades satisfaziam se no campo, por detrás dum muro ou dum arbusto. Também não havia electricidade (sendo a iluminação feita por candeeiros a petróleo, dentro de casa, ou com pilha eléctrica no exterior, em noite de lua nova). Não havendo também água canalizada, esta era fornecida pela fonte, mais adiante, junto ao canal e perto da ponte de madeira que permitia a passagem dos tractores agrícolas. A água era transportada em bilhas ou cântaros, trazidos à cabeça ou à ilharga. Junto à fonte, com bomba, encontrava se, no meio de canaviais, o tanque, utilizado para a lavagem da roupa. Espalhadas pelo campo, ao abandono e em degradação, várias alfaias agrícolas, algumas delas sendo maquinaria.
Na altura em que lá vivemos a maior parte das casas estavam desabitadas: habitavam apenas a família do capataz, que havia aderido à reforma agrária ( ), e a família do senhor Custódio: esposa (sra. Catarina), filhas (aciolinda e ... ) e neta (Eva), filha da Aciolinda



fotos MCG


Vale de Guiso é uma aldeia no outro lado do Rio Sado, com um cais de madeira, para os barcos que nele navegam e fazem a travessia entre as duas margens, como se referiu. Trata-se duma aldeia de casas brancas, com pequenos quintais ajardinados defronte, onde sobressai a Igreja e um edifício vizinho arruinado, com alguma imponência. Na venda junto ao rio fica o telefone público, outrora meio de contacto com o exterior. A alguns quilómetros fica o apeadeiro ferroviário com o mesmo nome. Numa aldeia próxima, vizinha, o táxi, que transportava o pessoal de e para Alcácer do Sal. As casas têm um pequeno quintal fronteiro, arborizado, o que não é habitual no Alentejo.

Os terrenos são arenosos, sinal de que outrora toda esta vasta região esteve coberta pelas águas marinhas. Sobreiros, oliveiras e pinheiros são o coberto vegetal característico, cuja principal cultura, de regadio, é o arroz.

Toda esta região de Alcácer do Sal é arenosa, testemunho da sua cobertura pelo mar, antes deste recuar deixando a descoberto esta fina areia branca, aqui e ali quebrada por afloramentos calcários, acastanhados; para além de sobreiros, na região abunda o pinheiro manso. (Memórias de Viagem, 1997.08.20)


Sobrevoando Évora



foto Victor Nogueira

Ontem andei de avião sobre Évora, que é uma cidade bestial lá de cima. Foi a 2ª vez que andei de avioneta na minha vida - a 1ª foi em Angola, tinha para aí três anos. /1) Tirei umas fotografias. (...) Aqui para nós, um pouco antes, quando o teco-teco começou a rolar na pista estava um pouco apreensivo, mas logo liguei à terra. Sobrevoámos a cidade, fomos a S. Bento, às piscinas, à Cartuxa, ao convento do Espinheiro. É bestial! (1974.12.23)


Foto VictorNogueira

(1) [Lembro-me que fui ao colo do piloto ou do co-piloto  e do painel de instrumentos da avioneta]


foto Victor Nogueira - o meu colega Seruca Salgado, o piloto

Por Setúbal

1. - Uma breve paragem em Setúbal para reabastecer a máquina e desentorpecer as pernas. (...) Escrevo enquanto espero o prego, o Compal de ananás e o iogurte de morango, aqui na esplanada dum café duma rua azafamada. O céu escureceu e à minha frente está cinzento. Daqui a pouco deve desabar um dilúvio. Gosto de Setúbal. Não sei bem porquê. É muito diferente de Évora. É mesmo o seu contrário: movimento e vida, azáfama e montes de pessoas, ruas largas e árvores. Reparo mais nas pessoas que em Évora. (MCG - 1972.12.28)

2. - Demos hoje uma voltas por Setúbal e pela  Serra da Arrábida. Os arredores da cidade são muito arborizados e algumas estradas correm junto ao mar (ou rio ?). Mas, contrariamente ao de ontem, o dia de hoje esteve enevoado e chuvoso...(..)  Em Setúbal reconheci o  Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar lhe "Você é que é o Zeca Afonso ?" e deixei o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)

3. - Daqui da esplanada do café, olhando à minha direita, a paisagem é esta. ( ) Olha lá, e se a gente viesse viver para Setúbal? É mais sossegada que Lisboa e é uma hora de camioneta! A tarde está chuvosa, o café está cheio de gente, rapazes e raparigas, e a passarada faz uma chilreada enorme por entre as árvores. (MCG - 1973.11.01)

4. - Resolvi sair aqui [Pinhal Novo] para apanhar o comboio para Setúbal. (....) Aguardo que me tragam o galão claro e a sandes de fiambre. Entretanto, nem de propósito, as mesas estavam cada uma com seu papelinho. (1) (...) Pelo vidro da montra do café avista-se o edifício da estação dos caminhos de ferro: conto 4 chaminés, enquanto se cruzam um miúdo de bicicleta e um tractor com atrelado. Um vasto rossio de terra batida estende-se lá fora, rodeado de casas caracteristicamente incaracterísticas. Lá ao fundo, uma mata enfezada e amarelecida. Alguns carros parados e pessoas sentadas pelos bancos. O café do leite sabe mal. No largo uma igreja por caiar, um coreto e um parque infantil, tudo com um ar desgracioso.

Aqui no café as pessoas jogam à "batota", ali num canto, enquanto outras duas estão lendo os jornais. Um outro personagem, atarracado, de boné e óculos, vai vasculhando a carteira e lendo os papéis que dela retira. Por trás de mim ouço vozes e algaraviada, bem como os tacos batendo nas bolas de bilhar. O casaco incomoda-me, pois tolhe-me os movimentos. Sinto me encalorado. (...) São quase 17 horas e daqui a 10 minutos é o comboio. Farto-me de percorrer um Portugal desconhecido. (1974.11.28)

(1)Trata.se de convocatórias policopiadas para uma sessão de esclarecimento e dinamização cultural da 5ª Divisão do MFA, em 29 e 30 Novembro 1974, que utilizo para escrever no verso.


Do Terreiro do Paço ao Cais do Sodré

.
Foto Victor Nogueira - cacilheiro no Rio Tejo

Olho para o Tejo à minha frente, cintilante como prata. Um ferry-boat acostado espera por ninguém, enquanto barcos sulcam o rio e gaivotas esvoaçam sobre ele. O autocarro vai-se enchendo, ouço os passos das pessoas que sobem para o 2º piso, o lugar ao lado do meu é ocupado por uma senhora idosa, de preto. O cobrador diz que já não há mais lugares e dentro em pouco o Tejo ficará para trás.(MCG - 1973.01.02)

Defronte a mim o Tejo refulge como um espelho. ( ) Passa uma fragata e há barcos ancorados. O ferry-boat prepara-se para acostar. Passam pessoas ali em baixo na rua e as gaivotas evolucionam sobre o rio. Estou no 2º piso dum autocarro, aguardando que ele parta. Começou a andar. Até já. (...) Almocei com a Emília [Dias]. O almoço no "Isaura", ali na Av. Paris, estava bom e falámos dos nossos velhos companheiros de lides associativas - quantos já se integraram no sistema? Outros continuam a lutar, alguns mesmo à custa da própria liberdade. (MCG - 1973.10.02)

P'ráqui estou num café no Cais do Sodré. Os autocarros e os eléctricos passam lá fora na rua. O ambiente está ruidoso e o tempo ameaça chuva. A sandes e o galão estavam uma merda. (São 18:30 de sábado) (...). Parece que vai chover. Esperemos que consiga chegar a casa antes do aguaceiro, pois não trouxe guarda chuva. (...) E por aqui me fico hoje. Tenho de ir apanhar o comboio [para Paço de Arcos]. Não avisei que ia jantar e vai haver sermão, pois não contam comigo. (MCG - 1974.10.19)

Já era tarde para jantar em Paço d'Arcos e dei uma volta, acabando por vir parar a um restaurantezeco aqui no Cais do Sodré, mesmo na rua dos bares e das prostitutas. Na cadeira ao meu lado ronrona um enorme gato. (MCG - 1975.03.25)


Amanhã regresso a Évora com o João Lucas. Vim ontem com o Viegas e a Violete; chegámos já tarde a Lisboa, onde jantei na tasca habitual lá para o Cais do Sodré, onde passeia o "bas fond" cá da cidade: prostitutas, chulos, clientes e chuis.  (1975.06.29)


Setúbal - Barreiro  - Setúbal

Na linha do Barreiro


Do Barreiro a Setúbal
corre o comboio
sobre os carris
faz que anda mas não anda
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
chiam as rodas
na estação
Sai
gente
entra
soa o apito
estremece o comboio
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
É de inverno
entra o frio
É de verão
abafa o calor
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
Faça
chuva
calor
o tempo que for
escorre a paisagem
seja
noite
dia
a hora que for
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
de pé ou sentadas
vão as pessoas
as pessoas
caladas
faladas
falando
sisudas
risonhas
lendo
meditando
caras cerradas no olhar ausente
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata


escrito no comboio Barreiro - Setúbal em 1982.03.18

De Lisboa ao Mindelo


foto victor nogueira - Mindelo -antiga estação ferroviária - suburbana, actual estação do metro de superfície do Porto

1. - Se o meu carro fosse de confiança amanhã metia-me auto-estrada do Norte acima, pois não tenho paciência para esperas e transbordos. Assim, tenho de passar por Paço de Arcos, descarregar, comprar bilhetes para o comboio, voltar a carregar o carro, levá-lo no dia seguinte para Santa Apolónia com uma hora de antecedência, secar na estação até à hora da partida, embarcar, desembarcar em S. Bento, esperar pelo descarrego do carro e ala para o Mindelo. Como se vê, uma aventura que se repetirá no regresso, onde espero ficar em Paço de Arcos alguns dias, em Setembro.  (MMA 1993.08.17)


foto Victor Nogueira - em Setúbal - o Renault 4 L

2. -  Já passou a hora de almoço e já foi tempo de passar por Santa Apolónia para comprar os bilhetes de  comboio para o pessoal e para o carro. Embarcaremos no domingo após o almoço. Embarcaremos?  Não seria mais apropriada dizer  ... encomboioremos


foto Victor Nogueira - em Sernancelhe - o Fiesta I

Gosto de ir até ao Mindelo. (...) Fica a poucos metros da estação, com ligações ferroviárias ao centro do Porto (a Sul) ou a Vila do Conde e Póvoa de Varzim (a Norte), em viagens que não ultrapassam os vinte minutos. Para além disso a praia fica a 2 quilómetros. (MMA 1993.08.20)


foto Victor Nogueira - Em Campanhã (Porto) aguardando a descarga do carro

Na Linha do Estoril

O tempo está húmido e frio e quando cheguei de Lisboa estava farto da viagem e da constipação (...) No comboio duas raparigas - especialmente a que se chamava Nani - tentaram provocar conversa - as deixas foram muitas - mas sem grande resultado. Não sei o que seriam: empregadas de escritório, operárias ou qualquer outra coisa. A máquina de discos aqui doutro café da rua principal de Paço de Arcos transmite qualquer coisa barulhenta e desconchavada cujo estribilho é "Oh Mary". Não vale a pena a troca, pois aqui também não há pregos nem leite. Tenho mesmo de ficar mal jantado. (1974.12.26)

A crise petrolífera de 1973 / 74


Em Mourão - foto MENS

Nesta época do ano o Alentejo é bonito [1973.Dezembro]. Em Mourão fomos até ao Castelo que o guarda, um velhote trôpego, abriu propositadamente para visitarmos. Embora com as muralhas restauradas, encontra-se arruinado. Disse-me o velhote que era do tempo dos mouros e dos celtas (Se me lembrar, amanhã tenho de ver na Enciclopédia Luso‑Brasileira). ([1]) Por lá andei, subindo escadinhas, galgando ruínas, no cimo das torres com o vento agreste, frio e cortante batendo-me no corpo, a vila e a planície estendendo-se pelos quatro cantos. (MCG - 1973.12.03)



[1] - Parece-me que o castelo afinal não é tão antigo, remontando apenas aos finais do século XV! (1997)

1. - A gasolina é quase como agulha em palheiro para encontrá-la. Está praticamente esgotada em Évora ou Lisboa. P'rá semana há mais! Domingo passado, segundo o Carlos, às 4 da tarde já havia 3 ou 4 carros parados numa bomba aguardando pela meia noite para poderem seguir rumo a Lisboa. No regresso de Portalegre tiveram de juntar-se-lhes. (...) (MCG - 1973.11.27) 
2. -Chegados a Évora, a 1ª bomba de gasolina ostentava ainda (?) o fatídico "Esgotado"; na 2ª uma longa fila de automóveis estendia-se desde a Porta do Raimundo à Porta de Alconchel. Mais uns metros adiante um auto tanque da SACOR enfiava pela estação de serviço (à saída para Lisboa) e num ápice 6 automóveis iniciaram uma bicha. Azar, que o empregado logo disse que só amanhã, às 8 da matina. E assim saímos do 5º lugar. É o que eu digo: a continuar assim a gasolina esgota-se ainda mesmo antes de haver. (MCG - 1973.12.03) 
3. - Há gasolina à farta nas bombas de Évora e acabaram as bichas. (MCG - 1973.12.04)  

Setúbal - Santarém - Setúbal

Este foi um percurso feito inúmeras vezes, durante alguns anos, quando a sede do STAL ( ) era em Santarém. Conforme as boleias, umas vezes o percurso era por Lisboa, Alverca (onde visitei o Museu do Ar), Vila Franca de Xira, Azambuja e Cartaxo (terra de vinho, onde duma feita fotografei uma fábrica de tijolos de traça original), via AE nº 1 e EN nº 1, outras via Porto Alto, por Pinhal Novo, Atalaia, Passil, Ponte das Enguias, Samora Correia, Benavente, Salvaterra de Magos, Muge, Benfica do Ribatejo e Almeirim. Este último percurso era muitas vezes tornado moroso devido à circulação de tractores agrícolas que no atrelado transportavam carregos de vermelhos tomates, por vezes transbordando para a estreita estrada que durante infindáveis quilómetros não permite ultrapassagens. No entanto a paisagem, sobretudo a partir de Azambuja, é verdejante e vêm-se muitos vinhedos.

De Setúbal à Atalaia o percurso ainda é feito por estreita e movimentada estrada, passando por povoações à beira da estrada sem algo de notável para assinalar. O Santuário da N.Sra da Atalaia era a primeira agradável surpresa, lá no cimo da escadaria que parte do amplo terreiro onde existe um cruzeiro. Depois a ponte das Enguias, periclitante, onde se situava um arruinado edifício que outrora fora caiado de branco, que não confirmei se teria sido um moinho de maré, para além de salinas e arrozais.

Da estrada a seguir recordo apenas que era arborizada em muito troços, atravessando povoações como as referidas onde não parávamos a não ser para tomar o pequeno almoço num qualquer café à beira do caminho. Samora Correia fica juntos dos rios Samora e Sorraia e do primeiro tomou o nome. De Benavente, uma vila agradável, cujo centro histórico merece visita, recordo o jardim gradeado, o cruzamento após o Mercado, em frente para Coruche e à esquerda para Salvaterra de Magos, após atravessarmos uma estreita, perigosa e comprida ponte sobre o rio Sorraia. Salvaterra de Magos, foi porto fluvial e é terra de touradas, e como tal referida num texto sobre a última corrida de touros em Salvaterra de Magos, para onde se deslocava a corte em veraneio e onde o herdeiro e filho de D. João III foi colhido mortalmente. De Muge, onde existe o Palácio dos Duques de Cadaval, cuja traça inicial se encontra bastante alter ada, recordo.me dum pinhal e do parque de merendas junto à estrada, com mesas e bancos para as pessoas comerem descansadamente.

À beira da estrada, em camionetas telheiros de colmo, vendem-se abóboras, frutas e produtos hortícolas. Finalmente Almeirim, onde numa noite chuvosa comi uma sopa de pedra num dos seus restaurantes, e a comprida ponte sobre o rio Tejo, até avistarmos o morro sobranceiro no cume do qual foi construído o na altura poderoso Castelo de Santarém. Almeirim foi terra onde os reis vinham passar o inverno nos séculos XV e XVI, mas hoje encontra se descaracterizada.

Fora deste trajecto, para os lados do Entroncamento e de Torres Novas, fica a vila da Golegã, onde se destaca a igreja matriz de N. Sra da Conceição, manuelina, de mestre Boitaca, com um magnificamente trabalhado portal. Célebre é também o atelier fotográfico de Carlos Relvas. A povoação, situada na lezíria ribatejana, é atravesssada pelo rio Almonda, e nela se realiza a Feira Nacional do Cavalo. (Memórias de Viagem, 1997) (MEMÓRIAS DE VIAGEM, 1997)

Santarém


É bonita a entrada em Santarém, proveniente do Sul: primeiro avista-se o castelo ao longe. Mudando de ponto de visão panorâmica, das Portas do Sol, no Castelo cujo interior está ajardinado, avista-se a estreita e longa ponte metálica de D. Luís (1881) e, mais além, a lezíria ribatejana e as vilas de Chamusca, Alpiarça e Almeirim. Vindo do Sul, depois de atravessar a Ponte sobre o Rio Tejo, à cidade chega-se por uma ladeira íngreme, como em Sintra, com uma capela mais em baixo, a meio da encosta, para além da Fonte das Figueiras, alpendre ameado no exterior da muralha medieval, com três arcos ogivais. 


Outras viagens

Há outras viagens em circuitos mais reduzidos e limitados. Quer eu quer o meu irmão tivemos cada um a sua bicicleta mas creio que delas não ficou qualquer foto, salvo duma anterior que tive aos seis/sete anos, enorme para o meu tamanho, mas que não está digitalizada. Já adulto o meu irmão teve uma, e é essa que surge nesta galeria. Aprendi a andar de bicicleta num dia. Fui para o Parque Florestal da Ilha do Cabo, em Luanda, e com muitas quedas, teimosia e nódoas negras, ao fim do dia tinha aprendido a equilibrar-me. Depois de aprender, nunca mais se esquece; é com o andar a pé. Deixei de andar de bicicleta já adolescente, na Praia do Bispo. A bicicleta já era pequena e as pessoas troçavam do "matulão".  As duas últimas são dos meus filhos no Mindelo.

O  automóvel a pedais era vermelho e fartei-me de andar nele, tal como no triciclo, que trouxera do Porto da minha estadia em Portugal com 3 / 4 anos de idade. As minhas fotos em miúdo são no Bairro do Maculusso e na Rua Frederico Welwitsch, onde morávamos. O carro de bébé também tinha sido o meu e creio que era verde claro. O Dr. Frederico Welwitsch  (1806-1872) foi um médico e boânico austríaco radicado em Angola que elaborou relevantes estudos sobre flora, coleccionou um importante herbário e descobriu no deserto de Moçâmedes um espécime vegetal que recebeu o seu nome.


welwitschia mirabilis





fotos de família



fotos Victor Nogueira

O jeep do meu pai

Os meus pais, o meu irmão e o meu tio paterno José João eram engenhocas com muita paciência e habilidade manual, desenhando e construindo mesmo mobiliário para a casa. Para além dos "gasolinas"  de motor fora-de-borda atrás referidos, o meu pai construiu um jeep  a partir duma carroçaria. Dele ficaram algumas fotos.


na cerca da Direccão Provincial de Obras Públicas


na Rua Frederico Welwitsch
no Bairro de S. Paulo, onde morámos entre a Rua Frederico Welwitsch e a Praia do Bispo


algures  em Luanda


"aéreas" aventuras

Fui um fim de semana à Madeira e foi impressionante a aterragem do avão no aeroporto, a sacolejar nos cabos que na pista serviam para diminir a velocidade conjuntamente com os paraquedas, de modo a evitar o mergulho no oceano. Sempre gostei de andar de avião e da azáfama dos aeroportos. Contudo numa das viagens que fiz de Luanda para Lisboa todo eu não queria embarcar, como se tivesse um mau pressentimento, mas forcei-me a fazê-lo e a viagem como habitual decorreu normalmente. No tempo dos aviões a hélice os súbitos poços de ar em que como que caíam desamparados era um incómodo, a sensação de que  estômago nos ia sair pela boca. E doutra vez, na véspera do embarque para Lisboa, perdi o Bilhete de Identidade, sem o qual não poderia embarcar. Por descargo de consciência dirigi-me aos "perdidos  e achados" na Polícia e ainda mal terminara a pergunta e já o polícia me dizia sorridente ser eu um rapaz cheio de sorte, pois tinham acabado de entregá-lo ali. 






A TAP faz parte da história de muitos de nós

Mas a minha coroa de glória foi ter um avião à minha espera durante uma hora, pois sem mim não levantaria voo. De Lisboa para Luanda e devido à avalanche de passageiros, incluindo muitos estudantes que iam passar as Férias Grandes em casa, a TAP fez o desdobramento para dois voos. Bem me fartava de ouvir nos altifalantes  "passageiro senhor Victor Silva, passageiro senhor Victor Silva, é favor dirigir-se ao balcão de embarque". Às tantas e perante a insistência pensei que poderia ser eu, que era conhecido como Victor Nogueira; lá me dirigi ao balcão onde me informaram que sim, dizendo que o avião não partiria sem mim pois a minha bagagem já estava no porão, que se eu não aparecesse  os passageiros teriam de ser evacuados e os porões esvaziados para prevenir um atentado bombista. Feito o check-in lá me levou solitário o autocarro até à escada de embarque.  Era o tempo da guerra colonial.

Sem comentários: