Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sábado, 14 de julho de 2012

em évoraburgomedirval - 1974 ( Abril - 01 a 24) por Victor Nogueira


  • a Sexta-feira, 13 de Julho de 2012 às 23:35 ·
    *  Victor Nogueira

    Meus senhores e minhas senhoras, prezados meniinas e meninas o fascismo está às portas de cair, embora 38 anos depois, já sem pés de veludo, aí está impante e travestido ... de regresso.

    Entretanto, enquanto não chega a madrugada de Sophia, extractos de poesia, relatos do estertor de Marcelo Caetano e a" bomba" de "Portugal e o Futuro" , viagens entre Évora, Lisboa e Porto, falando de Leiria, a descrição da Páscoa numa aldeia minhota, reflexões sobre o namoro e o casamento, a recta final no malfadado curso de Sociologia.

    Em Lisboa - O nome do café não sei. O tempo é de aguaceiros e o ar é cheio de ruídos. Lisboa é um desencanto e as raparigas são muito magras. Nas mesas lado a lado as pessoas sentam-se mas não falam, desconhecidas que são umas das outras. A minha mãe acabou de ler o jornal e diz que esta casa não serve mal. Diz-me para chamar o empregado mas sugiro-lhe que espere pois ainda tenho um guardanapo para escrever. O que é preciso é variar.

    Não gostaria de viver em Lisboa. Perde se muito tempo pelos caminhos. Bem, tenho de interromper que há quem esteja impaciente.

    Já cheguei à Pensão, onde me esperava uma carta tua, que apreciei. Afinal não vamos a Sevilha. Ficaremos em Lisboa até à próxima 4ª feira, altura em que seguiremos para o Porto. No regresso  [do Porto] devemos trazer o Carlos [Nunes da Ponte] O Camilo estava preparado para passar as férias em Évora (fraco gosto).

    Esta rua é muito barulhenta, passam muitas ambulâncias. Hoje andei às compras. Só comprei um par de sapatos, ainda.

    Mas … o guardanapo está mesmo no fim e tenho de deixar-te. Olha lá, recebeste uma carta com poemas do Manuel Alegre e do Daniel Filipe? Que tal essa ida a Badajoz?  (MCG - 1974.04.02)

    1 - Esta carta foi escrita em guardanapos.


    Ninguém a outro ama, senão que ama  
    O que de si há nele, ou é suposto.  
    Nada te pese que não te amem. Sentem-te 
           Quem és, e és estrangeiro.  
    Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
    Firme contigo, sofrerás avaro         
          De penas.

    ____

    Para ser grande, sê inteiro: nada
                   Teu exagera ou exclui.
    Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
                   No mínimo que fazes.
    Assim em cada lago a lua toda
                   Brilha, porque alta vive

    ___

    Não queiras, Lídia, edificar no espaço
    Que figuras futuro, ou prometer-te
    Amanhã. Cumpre-te hoje, não esperando
    .          Tu mesma és tua vida.
    Não te destines, que não és futura.
    Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
    E ela de novo enchida, não te a sorte
               Interpõe o abismo?

    Os poemas são de Ricardo Reis.

    (...)

    Já estou no carro, prestes a caminho do Queiroga. Está muito calor. Se não estivesse com uma valentíssima constipação era para ir passear para o campo. Assim não me apetece. Ciao (MCG – 1974.04.03)

    Esperava hoje notícias tuas mas não sei ainda se tal sucederá. São 17:00 duma quita feira em Lisboa, aqui a uma mesa da sala de estar de pensão- Além num sofá, a Franjinha – uma cadelita velhota ~ gane. Digo-lhe “Anda cá” e dou uma palmada na minha coxa esquerda. Ela salta para o chão e põe-se em pé, apoiando-se em mim, para eu lhe fazer festas.

    Aqui está sol, mas de vez em quando uma nuvem mais carregada de água, cinzenta de chumbo, ensombrece o dia. Almocei hoje com o Victor Gil; anteontem encontrei-me com o Viegas.

    Nunca o meu desencanto por Lisboa foi tão grande. Outrora no outro tempo ... Havia os grandes passeios, os encontros, as idas ao cinema. Era o tempo da disponibilidade do Luís Filipe, da Emília [Dias], do [António] Lampreia,  [de Económicas] do [Jorge] Zamith, do Martins Pereira, da Luísa Seia, estes [três] de Angola e meus velhos companheiros de Liceu [O Zamith já vinha da escola primária]. Mas o tempo casou uns e levou outros e mesmo que ainda os veja, como estão distantes de mim! Passaram todos, e eu fiquei.

    Penso em ti; não, não consigo pensar Os meus lábios são uma linha cerrada que a tua ausência torna áridos. Nada tenho a fazer nesta cidade, nem sei se haverá algum lugar em que eu caiba. Enfim … A minha preocupação não é o passado – nem o futuro.

    Tenho estado a passar os apontamentos de Sociologia Urbana. Na próxima 4ª feira iremos até ao Porto. A minha mãe quer ficar na Pensão S. Gabriel, para não ficar longe do seu menino [que sou eu]. Não me agrada a ideia. [eu fiquei em casa do meu avô Luís e a minha mãe em casa do pai, o meu avô Barroso, na Rua dos Bragas]

    A minha recusa a ir para Angola [com ela] põe a minha mãe doente. Não consigo ser carinhoso nem paciente para com ela. Sei os motivos, mas sozinho nada posso fazer para superar isto.

    Não tenho ouvido a BBC. A morte do Presidente da França levará à realização de eleições para a Presidência da República. Um opositor de peso do partido UDR (de Pompidou) será o candidato da aliança Partido Socialista-Partido Comunista, que tem vindo a ganhar cada vez maior adesão. Uma vitória do candidato destes dois partidos será um desaire para a política do actual Governo Português. (MCG - 1974.04.04)

    O [Emídio] Guerreiro acabou de recolher a casa; eu fiquei-me aqui no TACO para alinhavar umas linhas para ti. Daqui a pouco retransmitirão o discurso que o Marcelo proferiu esta tarde na Assembleia Nacional (Olha lá, os teus miúdos foram obrigados a “gramar” a pastilha ou deixaste-los ir até ao recreio gozar o solinho?).

    Pois é, após uma semana muito agitada por parte das altas personalidades do regime o Marcelo fez um discurso exemplar nas suas contradições; para além disso, um tentar rebater as teses de Spínola, publicadas no seu livro “Portugal e o Futuro” – que ainda não chegou a Évo0ra, aqui a 137 km de Lisboa. Um discurso estafado, que não engana quem dos mecanismos políticos e económicos conheça alguma coisita.

    Recusado o impossível recurso a um referendo popular, restou ao Marcelo submeter-se, em gesto teatral, às decisões da Moção que os deputados Ultramarinos porão à votação amanhã. Alguns destes já foram intérpretes na Assembleia [Nacional] de correntes existentes no Ultramar tendentes à autonomia, estilo federativo (teses de Spínola) Mas, da Comissão do Ultramar, que redigiu o texto da moção atrás referida, fazem parte deputados anti-Spínola. Estou curioso de saber qual será o texto: Federação ou tudo como dantes?

    Entretanto algumas altas patentes do Exército, incluindo Comandantes das Regiões Militares, reuniram-se com o Ministro do Exército. Dessa reunião estivera, ausentes outras altas individualidades das Forças Armadas, entre os quais o general Spínola, Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Olha, lá vai o Marcelo a subir as escadas. Nem o Chefe [General Costa Gomes] (MCG – 1974.04.05]

    Ah! Ah! Ah! Então não gostou da originalidade de um guardanapo-carta? “Uma m …!  “ Sim senhora, bonita linguagem. Bem, quis escrever uma gracinha, mas … olha, está uma tarde bonita, cheia de sol.Beethoven enche o quarto com a sua quinta sinfonia – ó céus – pássaros chilreiam lá para fora, no meio da floresta de cimento armado que me rodeia. Está uma tarde bonita e eu com uma enorme lassidão. A primavera dá para o amor, dizem. Mas … o meu amor está longe e conformada. E depois isto do amor tem muito que se lhe diga; se formos analisar os verdadeiros sentimentos que lhe estão subjacentes.

    O quarto está cheio de moscas – vá lá que me não incomodam – e Beethoven toca demasiado alto.

    Gosto de comer no “self-service”: um tipo não espera, é só servir-se e sentar-se a um lugar vago, na sala cheia de pessoas, umas acompanhadas, outras sozinhas. Tanta gente e todos tão estranhos ! Vejo agora Lisboa com o cansaço e a distanciação de 6 anos numa cidade de pedra e cal como Évora está. Estou em Lisboa mas longe dela ! Falo jovialmente às pessoas – outras vezes não – umas correspondem, outras não. Isto parece-me uma vida fictícia – sou agora estranho na cidade em que me criei.

    Fui ontem ao cinema ver um filme com o Jean Paul Belmondo: "O Magnífico" uma sátira aos filmes de espionagem estilo James Bond, de supermachos másculos, duros e dinâmicos, com "ordem para matar". Merlin é um escritor, pobre diabo frustrado que escreve romances - 42 em 15 anos - que são o reflexo da sua frustração e anseios - que projecta nos personagens e nas histórias estereotipadas na qual se reunirão os seres frustrados que todos nós somos, desde a mulher-a-dias ao marinheiro, metidos na mediocridade do dia-a-dia cinzento e sem futuro. Merlin é um quarentão, divorciado, sem dinheiro - os lucros do seu trabalho são para o editor - Tatiana, a heroína do seu último romance, é a jovem inglesa, estudante de sociologia, sua vizinha no pardieiro que habitam; a jovem com quem dorme - no livro - com os maiores requintes, repouso e companhia do guerreiro invencível do romance que o dia-a-dia real esmaga e nega. 

    Mas ... que ia eu dizer, ah! pois, toda esta cultura é uma masturbação. As aventuras no cinema, as fotografias e os anúncios pseudo-eróticos nas revistas, na televisão, nas ruas, que despertam desejos de ternura, pela identificação - quando os despertam, ternura que a cidade violentamente nega. Resta-nos a lucidez e este vazio da vida que não sei se alguma vez existirá.

    Aquela fotografia do "Cinéfilo": uma jovem sentada num banco, atrai o meu olhar que nele se detém: cara de menina ausente (embrenhada em profundos pensamentos?) ambas as mãos segurando a chávena que leva á boca, a aliança na mão direita. No corpo, um roupão entreaberto, deixando ver o seio esquerdo, as calcinhas brancas, as pernas cruzadas ... Uma fotografia erótica, reproduzida talvez em milhares de revistas, vista por milhares de indivíduos, que á noite beijarão ou farão amor com a mulher que não têm ou não lhes agrada ou pretendem impôr áquela imagem e semelhança.

    O livro "O Casal a Nú" é também deste género de leitura mistificadora, que pretende cloroformizar as pessoas.

    Enfim, deixo-te com as tuas “Delícias” editado pela Parceria A. M. Pereira. Não deve ser grande coisa, sabendo eu o tipo de livros que essa editora publica!

    Quando falamos de amor
    de que amor
    falamos?

    Quando esperamos realizar
    a nossa
    esperança
    de que esperança nos cremos
    portadores? A que verdade
    supomos esperançar-nos?

    Quando falamos da fonte
    e a madrugada
    sabemos se haverá água
    nas manhãs?

    Agarrados ao fogo das palavras
    afogamo-nos
    supondo ter a margem
    sob os dedos?

    Egito Gonçalves - em " O fósforo na palha" ).  

    Vou para o Porto 4ª feira. 10 ABRIL. A partir do dia 9 podes escrever-me para a Rua Fernandes Tomás [casa do meu avô Luís]. Quando vais para Santo Amador ? (MCG - 1974.04.06)

    Estou aqui num oculista da Baixa, aguardando que a dra. Maria Amélia se despache; entretanto vou conversando com a minha mãe. Uma seca ! Está calor e não devia ter vindo de camisola.

    Ontem, domingo, fomos até ao motel em Sto Amaro de Oeiras: era uma fartura de gente e ruído que nem imaginas. Connosco foram também a  D. Maria Amélia e a senhora idosa e jovial de que te falei em tempos [D. Carlota]. Lembras-te? Dei um pulinho até à sala de jogos. Ah! Ah! Está-me na massa do sangue. Sou um azelha na máquina que simula uma corrida de motos. Assim decidi-me pela máquina que permitia a simulação duma batalha aérea. Embrenhei-me de tal modo naquilo que eu no fim suava em bica. No 1º jogo fiz 120 pontos, no 2º 150, no 3º 320 e no 4º … mil, cento e tal. Ah! Ah! Ah! Ganhei assim um jogo à borla (desde que ultrapassemos, salvo erro, 540 pontos)Não há dúvida alguma que sem emoção, jogo e luta sou ninguém !

    À noitinha fomos levar a D. Carlota a casa. Saímos de lá era quase meia-noite. É uma senhora muito interessante, viúva, mas que se apresenta como o centro do mundo – embora esteja convencida do contrário. Mas … tirando isso e o que me parece ser uma certa teatralidade – parece-me sempre isso das pessoas que exteriorizam, assim, os seus sentimentos afectivos – tirando isso, dizia eu, falámos de assuntos a que só estou habituado a abordar com malta jovem -  e nem toda. nomeadamente relações sexuais e casamento, não como questões teóricas e moralistas, mas como situações reais e vividas. Como testemunhos pessoais de experiências e vivências que não se negam. Gostaria que tivesses estado, sobretudo para discutirmos depois o que lá foi discutido.

    Discordo de muitas ideias dela e vejo o mundo de modo diferente dela. Mas reconheço o mérito da luta que tem travado para se afirmar como ser autónomo – e não como capacho ou serva que este mundo exige muitas vezes que as mulheres (mas não só elas) sejan. E que elas muitas vezes aceitam ser.

    A propósito, e porque me falas disso na tua carta, lembrei-me de enviar-te 2 críticas sobre a peça da TV – CARA DE 12 LIBRAS. Junto também um recorte sobre as eleições presidenciais em França.

    Bem, amiga, está mesmo um calor que nos indispõe por causa da camisola que trago vestida. (MCG 1974.04.08)

    Pois é ! Se não for isto a gente entra no rame-rame da engrenagem deste sistema triturador. Ah! Ah! Ah!

    Sábado fui ao “Pão de Açúcar” dos Olivais e, entre as pouquíssimas coisas que me despertaram a atenção estavam uma série de decalcomanias. Daí o “insólito” desta carta [na 1ª folha, uma mini banda desenhada com “balões” meus, a abrir]

    Passei hoje o dia no Instituto Nacional de Estatística, fazendo o trabalho que o Cónim nos “legou” no fim do curso que nos deu ! Estou farto de contas, mas não há dúvida que a utilização duma máquina de calcular electrónica [em alternativa à minha Facit] ´r fumsa enorme facilitação. Vamos ver se amanhã consigo dar um grande avanço àquilo, [pois] tenho de começar a ocupar-me com a Estatística.

    O tempo agora “piorou” – tempo nublado e chuvoso. Hoje encontrei um motorista de praça “bacana”: um velhote rechonchudo, bonacheirão e folgazão, de voz altissonante,  cangalhas no nariz, que me falou dos seus tempos beirões e das “invenções da padralhada” – (“Acreditam tanto em Deus e no Diabo como eu; olhe que eu já fui seminarista e eles não sabiam responder às minhas perguntas; aquilo é um modo de vida como outro; se Deus existisse era  um criminoso pois teria criado o mal …”) E lá me foi contando um sermão do padre da sua aldeia, grande orador, e duma prolongada seca que levou à realização duma procissão implorando chuva. E de como o pároco, ao aperceber-se duma nuvenzita no cimo da montanha, prenunciadora de chuva, iniciou um grande sermão, invectivando Deus para que fizesse choverimediatamente. A tempestade foi de tal momta que arrasou as colheitas e campos, levando um dos paroquianos (ateu que, prevendo a tempestade, salvaguardara os seus campos) a dizer-lhe que mais valera ter implorado ao demónio, que talvez a chuva tivesse vindo com conta, peso e medida ! E a finalizar diz o velhote que antes preferia acreditar no Diabo que em Deus (se existissem) pois a este já o tinham pregado numa cruz e àquele ainda ninguém tinha posto a mão em cima.

    Mas … são horas de jantar. (MCG Lisboa 1974.04.09)

    São 17h 30 m Aguardo que o Cónim apareça – ele foi ali ao Ministério da Educação Nacional [MEN]. Entretanto faço horas aqui numa esplanada da Av. 5 de Outubro. Passam carros e pessoas – muitas raparigas há em Lisboa. Safa !

    Estou no CIREP (Centro de Informações e Relações Públicas do MEN) para saber das condições de ingresso na carreira docente das Novas Universidades (se é que alguma vez funcionarão!). Mas .. as meninas das “public  relations” são todas “pe’cebes” mas não percebem mesmo nada. Nem mesmo sabem sorrir, de tão alheadas que estão. Enfim … deram-me umas fotocópias duma notícia publicada nos jornais e, como dizia o [Raúl] Solnado “já não é nada mau!”

    Defronte, o sinal para os peões está aberto, mas os automóveis que vêm da rua lateral estão-se marimbando para os peões, como é habitual.

    Não sei se aprecias literatura humorística. Se assim for, o último livro Unibolso tem interesse: "Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. Aqui fica a recomendação. A despropósito – que tal a aprendizagem com o livro do Spínola ?

    Ao longo dele fala-se muito no povo e em plebiscito. Claro que haveria “uma preparação prévia”. Mas … e deixavam exprimir-se todas as correntes de pensamento e opinião ? “ Restaurariam entretanto as chamadas “liberdades”, nomeadamente de associação, reunião e liberdade de expressão e difusão do pensamento? Não o creio E submeter-se-iam aos resultados do referendo ? Ainda mesmo se ele fosse desfavorável?  Por isso desde 1928 não vão os governos portugueses em “cowboyadas” não venha por aí abaixo a revolução, que obrigue certa gente a cavar … e não propriamente batatas (Só me falta ler do livro o capítulo “Uma hipótese de estruturação política da nação” …  para que tudo – inteligentemente – continue como danes)

    [Isto de escrever nos joelhos é incómodo e já me dói a perna direita mais os ligamentos !]

    Houve uma pausa porque entretanto passou aqui na rua o Victor Gil e houve que trocar uns brevíssimos dedos de conversa. E o Cónim sem vir !

     Vi ontem o filme da "Noite de Cinema" - "O Caso Cícero", do Manckiewicz. Ah!Ah! Gramo aquele humor á inglesa. Faz-me lembrar um outro filme dele, mais recente: "O Perfume do Dinheiro". 

    O papel está no fim e não tenho mais. (…)

    Junto te envio duas críticas sobre as “Cartas de Soror Mariana” Sabes alguma coisa da história dela? Queres contar-me o que sabes?  (MCG - 1974.04.10)

    (humorístico) menino com um ramo de flores [motivo do postal] - (Sabes, não estou contente pela nossa ausência um do outro) Bem, este postal já começou a ser escrito há muito. Depois .... ficou arrumado a um canto. Já estou no Porto. Jantei em casa do avô Barroso e daqui a pouco vou para casa do avô Luís. A viagem foi boa, embora tenha chovido a meio do caminho. A paisagem é simplesmente maravilhosa - tão verdejante! Gostaria de viver por estas bandas. E tu?Gostaria de ver contigo estas paisagens! Sábado deves escrever-me para Lisboa e 2ª para Évora. OK? O tio Zé, a 1ª pergunta que me fez foi "Então a tua mulher, onde está?"  Ah! Ah! Ah! Um abraço do VM

    Não há nenhum filme de geito aqui no Porto. Safa! (MCG – 1974.04.11)

    Três poemas de Egito Gonçalves
    In Diário de Lisboa 74.04.11

    Que longo olhar perdi, em que momento
    aconteceu, no meio de indiferentes
    coisas, gestos … se existiu … liberto
    sem sequer o sabermos. Olhar
    que veio a ser canção, nudez,
    levedou em silêncio
    vacilan te, ao lado de lágrimas,
    crescendo até à sede, dia
    em gestação, dia claro, corpo
    em desafio, luz na terra
    que agora nos acolhe – principiou
    nesse olhar esquecido, sopro
    algumas vezes moribundo, um veio
    aberto na espuma, porta
    que se abre
    para a alma da casa, a sofreguidão
    dessa terra animada que, movendo-se,
    me trespassa, boca que me sorve,
    me revive, torna-
    -me espaço privativo, pala da mão
    aberta para dar, receber

    *****

    As tuas mãos ainda não falavam.

    Os olhos moviam-se à flor da água
    no espaço que detinham
    A aresta do tempo
    parecia firma, pétrea, os gestos
    esperavam, a sombra
    sobre as zínias.

    As tuas mãos ainda não falavam.
    Escreviam cartas
    Com nuvens entrevistas, drenavam
    No meu rumo as escórias
    Do passado, sons dispersos no enxofre.

    *****

    Quebrava na muralha no morrer
    De Outubro. Inha até à praia
    Ferida pelas linhas onde os sargos
    Prendiam. A ilharga abria
    Lâminas que avançavam entre
    rochas e areia, detritos esquecidos,
    até à pele abrigada na falésia
    promontório de terra violeta, ígnea,
    onde os ventos desenham no correr
    dos meses
    batendo os canaviais que o sol
    se opõe. Podem
    em tal água, aqui, os sargos
    sondar o insondável?


    Goios - a Páscoa numa aldeia minhota  (esta descrição consta duma nota anterior)
     https://www.facebook.com/notes/victor-nogueira/goios-a-p%C3%A1scoa-numa-aldeia-minhota-1974-1%C2%AA-tiragem/10150659532974436

    No dia 14 [Abril. 1963], domingo de Páscoa, fui, com o avô Barroso e o tio Zé a Goios, passando por Famalicão. Almoçámos em Goios, tendo me aborrecido imenso. O "compasso".  chegou por volta das 17 horas. À tardinha fomos para a Pedra Furada. Revi com prazer a Lourdes e a Cândida, e fiquei a conhecer a Celeste e a Amélia. Divertimo nos bastante. (Diário III - pag. 165)

    O tempo está muito instável; ontem, um dia cheio de sol e relativamente quente, hoje, frio, cinzento e ameaçando chuva. Daqui a pouco pôr-me-ei a caminho até casa do avô Barroso, donde partiremos para a sua aldeia natal - GOIOS [no concelho de Barcelos].

    (...)

    Cá recebi a tua carta, num mini-envelope, que amanhã já não passará. Amanhã … não Só a partir de 1 Maio. Amanhã é mas é o aumento das taxas postais (mais 1$50) e telefónicas (de 0.70 para 1.00)

    “Temos que falar e resolver os dois o nosso futuro, embora tu digas que o futuro não te interessa, só o presente (…) Para que o amanhã seja como nós queiramos temos de planeá-lo hoje.” Quando tu [Celeste] botas” sentenças destas, amiga, apetece-me dar um piparote no passado e no futuro, fazer uma pirueta e rir-me! Vá lá, que ao fim de 2 anos escreves aquilo que eu tenho tentado ao longo de dois anos: preparar o futuro; mas tu negas o presente, para construir o futuro; eu quero construí-lo no dia-a-dia.

    Tudo isto, amiga, são jogos de palavras. A vida é mudança, e o que é um momento contradiz-se no seguinte para talvez se afirmar novamente no futuro. Enfim, isto continuam a ser jogos de palavras.

    Precisamos de comer e de vestir e de casa mpara habitar? Quem o nega? Estou prestes a terminar o curso. Não como eu queria. Para terminá-lo tive de violentar-me. Troquei o “estudo” pelo “fazer e arrumar os exames” . Sem o equilíbrio emocional que busco há muitos anos ! Fi-lo sem ti, “sem o teu amor”, que raramente me serviu como eu esperava.

    Procurei ser sincero, disse-te e escrevi-te; talvez de modo que muitas vezes não me terei feito entender. Foste firme como um rochedo perante o qual o mar se desfaz em areia. Não porque a fortaleza estivesse em ti, mas porque tu te negaste ao mar. Buscava em ti a companhia e confiava que  o resto viria por acréscimo Mas quem entende a alma humana, especialmente quando ela se retrai e desconhece? Quisera que tivéssemos sido outros e quisera que eu não tivesse sido como fui!

    O que algumas vezes fui contigo e o que foste comigo é uma memória perante a qual os meus sentimentos se fecham e eu não sou mais que uma negativa. E no entanto penso por vezes em ti com muito carinho e ternura. E também com uma enorme volúpia. Mas … tu não estás!

    Não sei como encontrar o que busco no mundo e não sei também o que buscar em mim. Reservas-te para o futuro e eu quero-me no presente. Novamente jogos de palavras.

    Enfim, vou pôr-me a andar até casa do avô Barroso. Só mais algo que me ocorreu sobre o momento presente. Da resposta às minhas inquietações, às minhas interrogações, às minhas ansiedades, estás tu ausente. Porque doutro modo não quiseste ou não pudeste. Como te ausentaste também dos meus planos. Em 2 anos fizeste sempre o que muito bem entendeste, e sobre os teus planos nunca me pediste opinião; saco roto foi o destino de quanto te sugeri.

    Que sentido tem essa tua “descoberta” de agora: “Temos que falar e resolver os dois”, etc ?

    Significa isso que alguma coisa se modificará? Que virás a Évora? Que deixaremos de inibir os gestos de ternura por causa dos outros, por causa da tua mãe? Umas férias já foram passadas – sem razões que eu considere aceitáveis – cada um para seu lado. E se não casarmos em Agosto, como será o tempo nosso? Como até aqui? Por causa das “certezas” dos “outros” e do teu enorme “bom senso”? Ora, amiga, não façamos a carroça andar à frente dos bois !

    Já estou aqui em Goios. São 16 horas e o meu avô já me chamou ali do lado para me pedir um favor, muito de mansinho: que me ajoelhe e beije os pés da imagem. Se o não fizesse seria um escândalo, que as pessoas reparam em tudo: "Então ele é um ateu ?!"
    (...)

    Pois é, amiga, planeamos juntos o futuro?! Quando estou contigo sinto-me muito mais seguro de nós do que quando estamos longe um do outro e sou assaltado por montes de interrogações. Jun to a ti as coisas são muito mais seguras e tranquilizantes. Porque tu és a resposta.

    Vamos supor que efetivamente nos casaríamos. Que tencionas tu fazer? Como pensas tu empregar-te? Ou vamos csasarmo-nos para estar cada um para sua banda? Que pensas tu fazer?

    E depois … tal como a ti inquieta-me um pouco o casamento. É uma outra vida, que pode transformar-se em prisão e tédio. Para tudo há um sim e um não ! Sei como gostaria que nós fossemos, não sei se seríamos como eu penso que deveríamos ser. Se me ponho a pensar tudo se complica. Por isso prefiro agir, decidindo à medida que as coisas forem sucedendo ou acontecendo. Bem sei que não me adapto facilmente e que tenho dificuldade em ligar à terá e descomprometer-me daquilo em que me empenho.  Penso a vida muito antes de vivê-la. Não tenho a simplicidade suficiente para vivê-la sem pensá-la antecipadamente.

    Mas … tudo isto são palavras e muitas vezes – coomo tem sucedido – transformam-se numa rede em que nos afundamos.

    Desassossega-me o que se seguirá, agora que terminarei o curso. Que farei? Para onde irei? Desassossega-me a tua ausência, pelas muitas perguntas que me enchem, por vezes, o espírito. Até onde é que nos entenderemos?

    Enfim, amiga, o melhor é não continuarmos com este paleio. É mau que sejamos tão reservados e com tantas complicações. (…)

    Junto envio 3 recortes de jornais: um sobre o desalojamento de habitantes duma barraa, outro sobre o Bispo de Nampula e um terceiro sobre os inconvenientes da “Medicina Liberal” (MCG Porto e Goios, 1974.04.14)

    Uffa ! Ao fim da 14ª página é melhor fazer uma pausa para respirar e dizer novamente: Olá, Celeste!

    Ali a televisão transmite uma comédia musical que o eu avô Luís, a Alexandrina e a Teresa seguem atentamente. A Alexandrina ri-se alto e o meu avô sorri-se. Não aprecio comédia norte-americanas; são geralmente chaladas, e sensaboronas. Menos atentos, o Carlos e a Isabel estão encostados, com a cabeça no ombro do namoro !!!

    Ainda não sei se haverá a 2ª fase do trabalho para a Siemens. Se assim for, não sei quanto tempo durará (2 ou 3 meses?): como te disse, em princípio, só me interessaria se recebesse o equivalente a 4/6 contos mensais [20/30 €] Isso permitir-me-ia ter livres os meses de Agosto e Setembro para “espairecer” e procurar emprego.

    Se não houver 2ª fase …

    (...) (MCG – Porto 1974.04.14/15)

    Estamos aqui num café duma estação de serviço à saída de Leiria, na estrada para Lisboa.Mas que estafa! O engarrafamento de trânsito é tal que levámos duas horas para fazermos cerca... de 10 km. Um quilómetro, já dentro da cidade, fizemo-lo em meia hora, isto é, à velocidade de 2 quilómetros por hora!

    O café é muito barulhento. É uma estafa fazer 300 e tal km duma assentada e ainda faltam 120 e tal!

    O céu está cinzento de chumbo e já choveu torrencialmente. Parece-me que a Beira Litoral é muito pluviosa, o que não me agrada.

    Ah! Mas sabes porque foi aquele engarrafamento monstro ? É que a Estrada Nacional passa pelo centro da cidade; é só uma ponte e dois polícias sinaleiros! Enfim …

    Mas vou deixar-te até a próxima. Já atestei o [meu] depósito: um Nescafé e uma sandes de fiambre. Só não havia gasolina super para o carro. Está esgotada aqui na bomba. Vamos lá ver se haverá até Lisboa, já que pelo caminho até aqui não havia. Ao menos já não há aquelas bichas monstras de há algumas semanas. Até já que a minha mãe está em pulgas para partir e eu um pouco mais descansado. 


    Já estou aqui na Pensão Angola. Desta feita não fico no meu quarto habitual mas sim … imaginas ? Disse-me o senhor Fernando – o dono da Pensão – que desta vez fico no outro lado – “sabe, no quarto onde da outra vez ficou a sua noiva !”

    A viagem correu bem. A paisagem ao longo da estrada é maravilhosa.

    Mas estou muito cansado. Deixo-te um beijinho. Até amanhã.


    Já é 3ª feira. Após o almoço partiremos para Évora. Vou ali até ao Correio para saber qual a franquia, agora com, a mudança das taxas postais.

    Antão, que tal correu isso pelo monte? A tua mãe sempre falou com o teu pai? (MCG Lisboa 1974.04.16)

    Ainda ouvi o relógio da torre bater as 4 da matina; estava com um dos meus raros ataques de insónia. Acordei com o rádio a tocar daquela música que logo de manhã nos chateia a molécula. Safa ! Resultado – estou com uma soneira, uns bocejos! … E logo hoje que resolvi ir ao cinema ver ”Noite Americana”,  de Truffaut. Não tenho mesmo vontade, nenhuma !

    Hoje andei todo o dia com um grande “amor” por ti ! Nem calculas as ternurinhas que perdeste ! Aqui defronte a mim a minha mãe pouso o “República” e prepara-se para “atacar” a omolete. (…)

    O "Diário de Lisboa", ao domingo, tem vindo a publicar as "Cartas de Soror Mariana"; não me despertou o interesse para ler a primeira, mas resolvi ler as seguintes e gostei. São muito expressivas e embora eu não conceba amores dramáticos àquele ponto, compreendem-se os sentimentos daquela mulher. Se quiseres posso enviar-te os recortes que guardei. Queres ?

    13º retrato do pessoal da pensão de Évora - A  Adélia não está já em casa da D.Vitória -  quando fora de férias ia com armas e bagagens. Quanto ao Diogo  - que passou a tarde no meu quarto - disse me que vai também sair. Está nas mesmas condições que eu e paga mais 50 paus que eu [50 centimos] , i.e., 800 $ 00. [cerca de 4 €]  

     (…) Abriu um snack-bar, restaurante e salão de chá, o Camões, ali na Porta Nova, frente à Pastelaria Bijou. Almoçámos lá hoje mas é carote. Servem bem; a comida é saborosa. Tem uma decoração inédita em Évora, mas trivial. Parece que houve “molho” no dia da inauguração (a semana passada), quando um tipo do Norte, já com os copos, disse mal dos Alentejanos. Alguns bancos partidos ainda lá estão. (MCG - 1974.04.17)

    Cá recebi a tua carta; pois é, amiga, eu bem gostaria de, nalguns aspectos, ser diferente. Admito perfeitamente que devo ser algumas vezes muito “chato” para contigo.

    Quero muitas vezes estar contigo; bem sabes o quanto isso nem sempre tem sido possível. E por vezes descarrilo” Na minha carta [de 14 a 16 de Abrl ?] aquilo que te desagradou era como que um desabafo. Admito que sejam desabafos “chatos”. Mas devias ver que não era o mais importante da carta e do tempo.

    Não sei mais que dizer-te. Estou demasiado cansado. O nosso desentendimento é mais uma fonte de tensão para mim. E não posso dar-me a tais luxos.

    Beijo-te com a amizade e a ternura que eu gostaria fosse possível entre nós (MCG 1974.04.19)

    São 20:40 h. (…) Ao princípio da tarde o dia pôs-se quente e soalheiro, mas breve veio a chuva e a trovoada.

    Pensava que hoje de manhã terminaríamos o trabalho de Estudos da População mas …  nada. A 2ª parte da 1ª  fase (a única que faremos) levantou problemas na resolução. Penso que amanhã o terminarei. Isto é uma chatice, pois tenho atrasados os estudos de Técnicas de Investigação Social (tenho de entregar os exercícios até sábado) Para além disso o trabalho de Sociologia Urbana está parado há 3 semanas. Nem calculas a fartura que tenho disto tudo e de trabalhar nestas condições. A gente havia era de ter um sindicato, que não somos máquinas e temos direitos, um dos quais a um ensino decente, um plano de estudos racional (pedagogicamente) e professores que estivessem obrigatoriamente presentes. Irra !

    Enfim … Olha, comprei um livro de poesia de Alberto Pimenta: CORPOS ESTRANHOS. Aqui fica um poema:

    1º Preferências
    preferir limpar retretes. preferir andar
    o dia todo a fazer retratos. preferir e
    ngraxar sapatos. preferir trabalhar
    no matadouro. preferir lavar a louça.
    preferir fazer costura. preferir lav
    ar vidros. preferir ser cozinhei
    ra. preferir servir à mesa. pref
    erir trabalhar na maternidade. e
    fornicar por obrigação. ou prefer
    ir tudo isto ao mesmo tempo:
    ser dona de casa


    (MCG 1974.04.22)

     Parece-me que tudo em redor está muito longe de mim. Havia um personagem qualquer, creio que numa peça teatro de Shakespeare, que clamava em meio aos despojos duma batalha: “O meu reino por um cavalo !”.

    Com o relatório de Estudos da População ainda para escrever esta noite, para que a dra. Manuela Silva o leve amanhã para o Cónim, em idêntico estado de espírito estou eu: “O meu reino por uma confortável cama e um sono repousado!”

    Aqui na mesa do S. Domingos estão os restos do jantar. Preferia ter comido um bom bife. Mas só havia carne de porco. Tive de (des)contentar-me com  linguado grelhado. Ali a conta – que ainda não paguei, diz-me que gastei 52$50 [cerca de 25 cents]

    Após 3 semanas voltei hoje à cantina do Liceu. Agora é self-service. Se por um lado o serviço agora é mais rápido, o tempo para o paleio com a malta é menor.

    O novo snack-bar e restaurante Camões fornece refeições preparadas, como as do Pão de Açúcar dos Olivais, lembras-te? Um dia destes o Guerreiro e eu vamos experimentar.

    Apareceu-me hoje lás em casa [da D. Vitória] o Alexandre Vaz, que está de férias em Portugal. Termina a comissão militar em Angola daqui a 11 meses. Contrariamente ao que supunha por ele pouco soube da situação política em Angola (Apenas que o livro de Spínola está lá proibido, embora tivesse sido distribuído o [semanário] “Expresso” que trazia largos extractos de “Portugal e o Futuro”)  (MCG 1974.04.23)

    Acabei de jantar;  o [Emídio] Guerreiro e eu comprámos comida no "snack" Camões e viemos de abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!), filetes de pescada (estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com ervilhas (saboroso, mas a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o Guerreiro tinha) e maçãs (que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um. Ah! Esquecia-me, como fundo musical a "Pequena Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe me deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda se bem.

    A minha mãe telefonou hoje à noite. Sempre vai [regressa a Luanda] em Maio. Anteciparam o embarque, que será no dia 12, domingo. Diz que já está mais conformada e pergunta se lá vou passar as férias Ah! Ah! Ah!”

    Sempre consegui terminar o trabalho de Estudos da População. Tive de trabalhar até às 5 da matina. A partir das 3 já não era senão uma máquina a escrever à máquina o que o cérebro ditava aos meus músculos. Levantei-me novamente às 9; à tarde quis dormir mas fui acordado uma hora depois pelo palrar ali das meninas minhas vizinhas e suas visitas, no quarto ao lado.

    Daqui a pouco vou até ao café para dois dedos de conversa com a malta e depois venho deitar-me. Amanhã tenho de começar a estudar Estatística para resolver os exercícios de Técnicas de Investigação Social II, cuja entrega na 4ª feira condiciona minha admissão ao exame de 4 de Maio. Enfim …

    Não se compreende como é possível a “Maria” continuar a dar aulas nas condições em que tem dado nos últimos tempos. Ninguém pensa também nos miúdos ? Dá saudações minhas à “Maria”.  (MCG 1974.04.24) 



    D. Quixote e Sancho Pança, por Pablo Picasso
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