CARTA XLI
Ex.ma Senhora D. Ofélia Queirós:
...
(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.a a pegar na imagem mental, que acaso tenha formada do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex.a
Álvaro de Campos
eng. Naval
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carta de Ofélia Queiroz a Álvaro Campos
Ex.mo Senhor Engenheiro Álvaro de Campos
Permita-me que discorde por completo com a primeira parte da sua carta, porque, nem posso consentir que Vª Exª trate o Ex.mo Sr. Fernando Pessoa, pessoa que muito prezo, por abjecto e miserável indivíduo nem compreendo que, sendo seu particular e querido amigo o possa tratar tão desprimosamente. Como vê estamos sempre em completa desarmonia, nem podia deixar de ser, pedindo-lhe por especial fineza, que não volte a escrever-me. Quanto às observações que me faz, como foram ditadas pelo Sr. Fernando Pessoa, farei quanto em mim caiba por lhe ser agradável. Agradeço o conselho que me dá, mas já que me puxa pela língua, deixe-me dizer-lhe que quem eu de boa vontade há muito tempo teria, não deitado na pia, mas debaixo dum comboio, era Vª Exª. Esperando não o tornar a ler, subscreve-se com respeito a 26-09-1929
Ofélia Queiroz
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CARTA 59
Meu querido amor
Que triste ideia teve em encarregar o Sr Engenheiro Álvaro de Campos de escrever-me? Ele afinal não é seu amigo, trata-o tão mal! E não sendo seu amigo também o não é meu, e não sendo meu amigo eu também não sou amiga dele, portanto não gosto dele, detesto-o pronto. Peço-lhe meu querido Fernandinho que não volte a encarregá-lo de me escrever, e que por fineza lhe entregue a minha carta, que por não saber a sua direcção junto à sua. Ele afinal só pretende desacreditá-lo, mas eu não o poupo, e decerto não me escreverá mais.
Agora outra coisa: Gosto tanto que me telefone à noite! Já que nos não podemos ver, ao menos sempre é mais agradável falar assim um pouco mais intimamente. Só me dá vontade de enfiar pelo telefone e ir ter com o meu queridinho, mas está vedado o trânsito de "vespas" pelas linhas telefónicas... Que grande me vai parecer a noite de hoje e parte do dia de amanhã. Quase que fazia oito dias sem o ver. O Fernandinho não lhe custa estar tantos dias sem ver a sua Ofelinha? Gosta muito dela, gosta[,] amor? Então seu maroto, eu na minha carta d'hoje mostrava um princípio de afeição? Só princípio? E acho-me eu exigente mas ainda bem que também o é, entender-nos-emos assim melhor, porque sentimos da mesma forma, não é Fernandinho? Mas não me disse se lhe agrado para sua mulherzinha. Se lhe agrado Fernandinho? Se lhe agrado, e agradando-me o meu querido amor tanto para maridinho (parecia-me um sonho eu um dia vir a tratá-lo assim) não retardemos uma felicidade tão grande e tão desejada, pelo menos da minha parte. Mas estou convencida que Fernandinho, também há-de gostar muito de ter um dia o seu lar, com uma mulherzinha muito ao seu gosto e que torne o lar alegre e o Fernandinho feliz. Diga-me, não são estes os seus desejos? A não ser que não seja eu a mulherzinha (porque eu não chego a ser mulher) muito a seu gosto...
A mim encanta-me só a ideia de o vir a ser, de viver consigo uma vida inteira, sempre muito amigos e carinhosos! Mas não receberei de boa vontade na nossa casinha o tal Senhor Engenheiro, isso não. Sobre o assunto do meu encontro, escreveria muito, mas receio maçá-lo. Só lhe digo que tenho ânsia de ser sua esposa, e o Fernandinho, não tem, de ser meu esposo? Se gostar tanto de mim como eu de si, tem a mesma.
É isto que me tira o sono! Fica agora sabendo?
Adeus, meu amor, eu não lhe roubo mais tempo com as minhas cartas sempre tão mal redigidas, mas o Fernandinho já me conhece, em deixando escrito o que sinto é o principal, não é? Góta de mim? Góta munto? Góte chim?
Manda-lhe muitos beijinhos a sempre muito sua
Ofélia
26-9-929
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Cartas De Amor
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Caixa Postal 147
(Acróstico de Fernando Pessoa dedicado a OPHÉLIA)
Onde é que a maldade mora
Poucos sabem onde é
Há maneira de o saber
É em quem quando diz que chora
Leva a rir e a responder
Indo em crueldade até
A gente não a entender
Nota: Relato da Exma Senhora Dona Ophélia Queiroz, destinatária destas Cartas de Fernando Pessoa, recolhido e estruturado por sua sobrinha-neta Maria da Graça Queiroz.
Um dia faltou a luz no escritório. O Freitas não estava e o Osório, o «grumete», tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o e pô-lo em cima da minha secretária.
Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetezinho para cima da secretária, que dizia: «Peço-lhe que fique». Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu confesso, também lhe achava uma certa graça…
Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: «Ó, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até do último extremo, acredita!»
Fiquei pertubadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me apaixonadamente, como louco.
Surgem assim os primeiros versos que me dedicou; versos que infelizmente depois me desapareceram, mas que nunca esqueci:
Fiquei louco, fiquei tonto,
Meus beijos foram sem conto,
Apartei-a contra mim,
Enlacei-a nos meus braços,
Embriaguei-me de abraços,
Fiquei louco e foi assim.
Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.
Boquinha dos meus amores,
Lindinha como as flores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me
E tantos beijos p’ra dar-me
Quantos eu lhes dou também.
Botão de rosa menina,
Carinhosa, pequenina,
Corpinho de tentação,
Vem morar na minha vida,
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração.
Não descanso, não projecto,
Nada certo e sempre inquieto
Quando te não vejo, amor,
Por te beijar e não beijo,
Por não me encher o desejo
Mesmo o meu beijo maior.
Ai que tortura, que fogo,
Se estou perto d’ela é logo
Uma névoa em meu olhar,
Uma núvem em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a poder achar.
Fui para casa, comprometida e confusa. Passaram-se dias e como o Fernando parecia ignorar o que se havia passado entre nós, resolvi eu escrever uma carta, pedindo-lhe uma explicação. É o que dá origem à sua primeira carta-resposta, datada de 1 de Março de 1920.
Assim começámos o «namoro».
Confira a primeira carta de Fernando Pessoa para Ophélia Queiroz, clique aqui.
http://www.pessoa.art.br/
Carta - 01/03/1920
Ophéliazinha:
Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m’o. Assim, entendo da mesma maneira, mas doe-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Opheliazinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».
Porque não é franca comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém-, e quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lh’a venham acrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica d’isto tudo sou eu.
Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim…
Ahi fica o «documento escrito» que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugenio Silva.
01/03/1920
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