Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

sábado, 3 de setembro de 2016

SOLILÓQUIO EM TORNO DE SEBASTIANA BALDE DE ÁGUA FRIA


foto victor nogueira - pôr do sol em Cela (Alcobaça), na herdade que foi do General Humberto Delgado


João Baptista Cansado da Guerra (12.1/2)

* Victor Nogueira
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SOLILÓQUIO EM TORNO DE SEBASTIANA BALDE DE ÁGUA FRIA, PRINCESA DOS MUITOS,
CÁLIDOS E ÁSPEROS NOMES, EM TEMPO DE XUTOS E PEDRADAS.
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E o narrador chegou à boca do palco e disse:
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João Bimbelo vivia na Quinta de Todos Nós envolto num sossego cinzento e morno quando Sebastiana Lua Nova lhe entrou pela casa dentro com o seu jeito esvoaçante e cintilante; não era João águia ou gaivota, mas sim pregoeiro ou contador de histórias, vogando pelas sete partidas do mundo numa barca mal aparelhada e dele apenas se podia dizer que era o sol e o mar em busca da brisa suave e refrescante ou da verde planura na cidade dos homens.
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Quando Sebastiana Mil Sóis repousava em João Bimbelo era como se um rio enchesse a sua casa com o murmúrio de mil candeias, semeando o ar de cor e alegria. Mas demasiadas vezes o ar deixou de ser belo e calmo e o mar verde e sereno, demasiadas vezes a brisa se transformou em vendaval para além do qual não se vislumbrava qualquer mar de calmaria, por mais sedutora, cariciante e alegre que fossem a voz e o jeito da Princesa, mulher-menina em fugas constantes em torno do redondel, mulher-achada de mil promessas em flor fugidas!
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E no entanto eram doces e macios a pele e os lábios de Sebastiana Verde Sol, brilhantes de mil promessas os olhos da cor do trigo em flor, um campo de giestas com sabor a cravo e canela a ondulante nau onde vogava a Princesa que encantara João Bimbelo, que sem nada de ratão ou gatarrão se tornou novelo enleado com fraca rede na roca de Sebastíana Raio de Sol,
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Nesta altura Sebastiana Mil Sóis soltará uma das suas deliciosas gargalhadas com sabor a menina dizendo com agridoce sorriso “Não há meio, João, de ganhares juízo, de me tirares do pedestal em que me colocaste. Pois as princesas morreram há muito; as que existem em teu pensar não são raposas nem raposinhas e o derradeiro dos príncipes há muito que faz tijolo e não há manhãs de nevoeiro ou dias de sol que o façam renascer, mesmo que me agrade o que escreves e dizes de mim com tal gentileza, encanto e sinceridade"
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E com duas palavras, um sorriso (trocista?) por detrás dos óculos escuros, um jeito de encolher os ombros de quem olha para outro lado com a pressa e enfado de viver depressa, derrubará Sebastiana Mandrágora o xadrez calculadamente encenado por João Baptista Cansado da Guerra ou o improviso repentinamente suspenso no vazio!
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Coitado do João Bimbelo, dirá talvez o espectador parafraseando Pessoa, coitado do João Baptista que um dia se agradara duma certa Sebastiana Verde Sol, Princesa de muitos e cálidos nomes. E neste ponto do conto João Baptista Cansado da Guerra sentar-se-á defronte de si mesmo e rir-se-á dos seus (des)enganos porque um dia se agradara de Sebastiana da Cor do Trigo em Flor.
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E o riso de João Bimbelo ficar-se-á uma vez mais pela flor da pele, mas dessa marca poucos se aperceberão, porque João Baptista fora seduzido e se agradara de Sebastiana Princesa dos muitos e cálidos nomes, primeiro porque a considerara diferente das muitas Maria-Vai-Com-As-Outras que enxameavam os campos e o povoado e em segundo porque é natural que um homem se agrade duma mulher, especialmente se ela for sedutoramente sedutora e nela se reconhecer como igual em busca da liberdade e do horizonte vermelho.
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E com nova risada, com seu jeito de lançar os cabelos para trás, gracejará Sebastiana dizendo que se trata duma indómita amazona em busca de outro sol e de outro mar e que o seu caminho e a sua rota passam ao largo de João Baptista, o qual lhe dirá que a liberdade dela não se cruza com a solidariedade para com os seus iguais, antes cavalga em redor do seu belo, doce e apetitoso umbigo reflectido em cristalino espelho obscurecido, como pena esvoaçante levada pela brisa ou pela corrente, que deste modo perdiam a sua qualidade refrescante
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E nesta roda do ora digo eu ora boquejas tu se foi escoando o tempo e os segundos somando horas, dias e anos, fazendo o coração de João Baptista oscilar como nave mal ancorada aproando ao cais de Sebastiana Princesa que não era rainha. E João Pregoeiro dirá a Sebastiana Mil Sóis, uma vez mais, que ela enche a casa de cor e alegria e semeia o ar de estrelas e que a procura porque aprecia a sua amizade e companhia embora ninguém possa prender o vento porque quando tal sucede o vento deixa de ser brisa e transforma-se em pântano, como ficava a disposição de João Baptista quando a procurava alegre, assim-assim ou nas lonas e ela lhe respondia por cima do ombro ou como quem diz: "Despacha-te, João, vê se te vens porque está na hora de eu me partir", olhando o relógio e comendo pevides por entre dois lânguidos gemidos ou três suspiros, encenados ou não, o taxímetro, marcando a hora e o serviço.
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E novamente Sebastiana Raio de Sol se rirá por detrás dos óculos escuros e disso apenas os lábios darão notícia enquanto diz "Não há meio de ganhares juízo, João, pois desta água não permitirei que tu bebas, que sou independente e livre e para a sede de outrem me reservo, mesmo que as fontes sequem e o moreno vale se transforme em deserto sufocante."
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E rir-se-á também João Baptista ao retorquir que não é ele que fala em machos e fêmeas, antes em homens e mulheres e, acima de tudo, em pessoas, e que se ela em desconversa e a despropósito Ihe diz "Desta cisterna não beberás porque para outrem me reservo" revela mau gosto e pouca amizade, sem a simplicidade de com o seu jeito de pão-pão-queijo-queijo afirmar o vero significado de "Olha para o que eu quero e não para o que em palavras e só em palavras recuso”, porque João lhe dissera apenas " Procuro-te porque gosto de ti e da tua companhia e quero a tua amizade e gentileza, porque o resto virá por acréscimo, se for tempo ou ocasião de acontecer, porque te respeito e à tua liberdade, coisa a que pelos vistos mal habituada estás."
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Ao que Sebastiana responderá "Deixa-te de paleios que os machos são todos iguais, bem os conheço desde menina, são tudo falinhas mansas e delicodocices mas depois vêm as prisões, as pressões e os bofetões e é por isso que eu te varro ao enxota moscas sape gato." E o dia cobrir-se-á de breu, pelo que João Baptista Cansado da Guerra lhe dirá "Cuida de ti, Sebastiana Mandrágora, cuida de ti e do que fazes e dizes não venha o lobo mau em noite de lobisomem e te cante o conto da sereia, pois acreditei que não fosses Maria‑Vai‑Com‑As-Outras, pondo em meu pensar que também tu amavas a liberdade e aqueles que a defendem, apesar dos seus erros, pois só não erra quem não vai à guerra,"
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E neste ponto o pregoeiro interromperá o solilóquio e dirá que isso da liberdade fia pianinho e muitas vezes os próprios inimigos da liberdade a reclamam para mais facilmente a destruírem lançada em suas masmorras profundas e solitárias. E Sebastiana Princesa soltará nova gargalhada ao dizer "Vês, vês como eu sou livre como o vento e só faço o que posso estando na prisão ou dormindo envolta em meus sonhos e devaneios?!" Pelo que João perderá a piada mais ou menos fina, murmurando que por vezes os outros nos agradam e depois buscamos racionalizar e procuramos explicações: o sorriso, os olhos, a boca, o tom da voz, o corpo sedutor e com isso tudo envolvemos a solidão e os nossos desejos mais profundos de paz e serenidade, enquanto noutras vezes a sedução e o encanto vêm aos poucos, hoje uma palavra, amanhã um gesto e por aí fora, até que a rede e o enleio se completam, com malha mais ou menos apertada.
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E aqui novamente o narrador interromperá o pregão dizendo que nada disto pensara dizer pelo que João retomará o fio a meada e dirá que já tudo foi dito e redito e que mandou chamar um ilustre retratista do reino que pintou muitas e variadas poses de Sebastiana Fio de Prata rindo, meditando, olhando, brincando ou escondida por detrás dos seus malfadados óculos escuros, com seu eterno sorriso gaiato ou trocista em seu rosto multifacetado. E esses mil retratos, paupérrimas imagens e reflexos de Sebastiana Princesa, adornavam os salões e corredores do Paço sem que alguém mais os vislumbrasse para além de João Baptista, que com mais ninguém compartilhava ou podia compartilhar o encanto e a sedução de Sebastiana Mil Sóis, a quem oferecera muitas e variadas escribaduras em torno do amor, da amizade, da sedução e também do (des)encanto, que ela guardava no fundo dum qualquer baú. E aqui Sebastiana Agridoce dirá qualquer coisa que o vento levará, abafada pela voz do pregoeiro dizendo "Cuida de ti João, cuida de ti, que há uma diferença entre descobrir e conquistar, entre a paz e a guerra, e bom seria que Sebastiana o soubesse também, pois que o vento é livre enquanto não pára e é nosso amigo quando nos acaricia o corpo e o rosto, mas destrói‑nos quando não sabemos fazer-lhe frente ou deixá-lo passar de lado.”
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E Sebastiana Mil Sóis dirá "Que bem que ele (por vezes) escreve", tal como outrora haviam dito Maria Antónia, Maria-Vai-Com-As-Outras, Maria do Mar ou Maria Papoila. E João lembrar‑se‑á disso e resguardará de novo em si os gestos de amizade e ternura que a Princesa dos Muitos, Cálidos e Ásperos Nomes lhe despertara porque o encantara e lhe agradara vai para seis longas luas, uma eternidade face á brevidade da vida e á impaciência dos mortais. E caindo em si, João se lembrará que lembrará que Sebastiana Morgana o avisara que não se prendesse a ela, que era mulher esvoaçante como a borboleta que paira de flor em flor em busca do fel que agridoça a vida, sem âncora nem porto de arribação, como se João acreditasse que fosse mesmo assim, como se não fosse verdade que muitas vezes pela boca morre a pescada que antes de o ser já está presa nas mãos do pescador quando este aparece e utiliza o fio, a rede, o anzol ou o isco apropriados.
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E Sebastião Braço de Ferro encolher‑se‑á como no retrato à beira do lago e desta feita não permitirá que João a beije ou acaricie, dizendo novamente que se não quer prender nele e tem receio de se vir por aí abaixo, pois é mulher séria, embora mui sorridente, e não é Maria Embarcadiça Embarcada Em Qualquer Navio Sem Rumo Nem Destino. pelo que o pregoeiro interromperá a escribadura para dizer "Cuidem do que fazem ou dizem pois que as palavras e os gestos por vezes são como o fogo e o vento e depois de passarem o chão fica negro, gélido e salgado e entre vocês já existem demasiados equívocos, demasiados desencontros, demasiados enganos, demasiadas perplexidades que obscurecem a vossa amizade." Então Sebastiana Mandrágora tocará o corpo de João fortuita ou prolongadamente e João acordará no silêncio da madrugada e em vão procurará Sebastiana da Cor do Trigo em Flor pelo que nenhuma ave iluminará o silêncio ou libertará o murmúrio de mil candeias.
continua




1 comentário:

Maria disse...
Estou a gostar deste conto, como é que acaba?
Estou curiosa
Bj
MAria
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João Baptista Cansado da Guerra (12.2/2)

* Victor Nogueira
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continuação
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"Vês, João, vês como és indiscreto no que escreves sem cuidar de mim, sem cuidar que há mil olhos e mil ouvidos e dez mil bocas em nosso redor ?”, pelo que João Baptista descansará na doce, fresca e apetecida pele com sabor a cravo e canela e lhe dirá "Sê simples, Sebastiana, sê simples e não digas desta água não beberás porque eu não quero e se não queres, então cala-te, e se queres não brinques com o fogo e o vento que tudo destroem ou ajudam à vida conforme o uso que deles fizermos e a sabedoria que em nós houver. Porque as tuas palavras negam o que o teu hábito provoca, os teus gestos renegam o que o teu corpo pede e a tua voz e o teu olhar denunciam, haja ou não sinceridade e/ou descuido da tua parte", ao que Sebastiana Pé Ligeiro e Força Nas Canelas responderá "Passado foi o tempo em que tal sucedeu porque tu não me entendes(te) nem eu a ti e por isso hoje sou mais resguardada perante ti,"

E neste ponto o narrador olhará para o relógio na praça pública dizendo para consigo "Bolas, já são sete e trinta da tarde e ainda não parou de chover nem Sebastiana apareceu; lá se lixou o jantar mais a bela companhia e a doce conversação e novamente não há novas nem mandados." Se fosse noutro tempo João preocupar-se-ia mas hoje apenas encolhe os ombros dizendo com certo amargo de boca "Como se pode exigir ou pedir ao vento que seja o sol e o mar, quando esse vento é apenas vendaval que levanta alterosas ondas ou tempestades de areia, que tudo varrem na ânsia incontida das palavras e dos gestos equívocos ou sem sentido? Como pode o cego dar vista ao cego ou o mudo falar com o cego?!."

E o contador de histórias dirá "Basta, João, basta, que vais a reboque das palavras apenas por que uma certa Sebastiana Raposinha te entrou pela casa dentro enchendo-a de cor e alegria e que por isso pensaste que nela encontrarias amizade e com ela paz e serenidade, que o resto viria por acréscimo se e quando fosse tempo ou oportunidade de acontecer. Mas vós ambos sois duas crianças sem sabedoria nem paciência, sem que se conheça bem qual de vós é pior aprendiz de feiticeiro." E deste modo um envolvente e pesado cansaço entrará dentro de João Bimbelo, invadindo todos os poros e o menor interstício, as palavras e os gestos esfarelando-se em negro de chumbo, um areal no lugar do coração, vulgaridade quanto baste, uma gasta armadura impedindo a pirueta e o sorriso de quem lança os males por cima do ombro e prossegue a caminhada de mãos nos bolsos e assobio nos lábios, a passada larga e despreocupada, em busca de outros portos e marés onde finalmente João Baptista possa ser Descansado da Guerra.

E novamente o narrador se intrometerá "Chega, porque se ambos sois amigos então acabai com a guerra das palavras equívocas e dos gestos com muitas leituras para o mesmo desejo e olhai para além do vosso umbigo," pelo que João encerrará a escribadura porque é necessário cozinhar o jantar, necessidade prosaica pese embora a sua vitalidade essencial. Mas antes dirá “Cuida de ti Sebastiana Mandrágora, pois os homens não são todos iguais, porque sendo assim também o são as mulheres e então tu serás na voz do povo e das comadres falsa, fingida, vendida, pronta a trazeres os homens pela arreata nesta vida onde se cruzam os jogos de poder que terminam na prisão de alguém e lá se acabam a tua diferença e o teu amor à liberdade!" E Sebastiana Mosqueta Rosada responderá com o seu riso de menina gaiata que nunca se sabe quando é maldosamente trocista ou simplesmente brincalhão e lançará novamente João às lonas dizendo "Olha por ti, João, olha por ti que és demasiado transparente em determinadas situações e demasiado racionalista e pouco terra-a-terra, levando as coisas muito a sério e tudo queres entender com os olhos da razão embora tu também brinques e por vezes digas piadas", pelo que o narrador em vão se intrometerá porque as palavras são como as cerejas, atrás de umas outras vêm, impedindo o encerramento das escribaduras e oralduras, transtornando deste modo a melhor narradura assim descarrilada.

"É como dizes, pregoeiro, é como dizes, e eu João Bimbelo o sei com um saber de experiência feito, pois esta mulher entrou-me pela casa dentro e libertou mil crianças dentro de mim que sentiram o veludo da sua pele morena, tão fresca e suavizante e por isso lhe disse gosto de ti, de falar contigo, de estar contigo, gosto da tua companhia, de ver-te na minha casa como peixe na água, de sentir o teu corpo junto ao meu. E pedi-lhe a sua amizade, mas ela deixou-me demasiadas vezes a falar sozinho e não Ihe vi ainda gestos de amizade e ternura antes palavras vãs acerca da minha "individualidade" e da minha paciência, como se os "amigos" fossem elásticos onde descarregamos as nossas macacoas e pedradas e por isso, quando penso nela, não encontro nem o sol nem o mar nem estrelas nem crianças correndo dentro de mim; quando penso nela encontro apenas um enorme e opressivo silêncio, uma garra no lugar do coração. E no entanto, Sebastiana, quantas vezes me provocaste, quantas vezes julguei ler em ti sinais escondidos que me levaram a crer que poderias estar enamorada de mim e que te resguardarias com as tuas fugas e as tuas palavras agrestes ou por cima dos ombros? E pergunto ao tempo que passa porque te procuro ainda, Sebastiana Pé Ligeiro e Força nas Canelas, quando há tantas Marias na terra, e porque continuo aprisionado do que resguardado ou inexistente é, porque continuo preso a uma Sebastiana Mil-Sóis que uma noite me entrou pela casa enchendo o ar de poalha dourada e nela julguei encontrar uma mulher de quem valia a pena ser amigo?”

E João dirá para com os seus botões que a procura, é verdade, talvez demasiadas vezes, embora não seja cãozinho levado pela arreata, procurando a dona que o maltrata, ao que o narrador acrescentará que ele a procura porque gostaria de ser amigo dela, porque a respeita e considera, porque se preocupa com ela, porque Sebastiana Morgana é importante para ele e porque, sabendo ela disso, o magoa porque o atende por vezes com um jeito displicente, desprendido e frio, como se o estivesse a pôr com dono ou a armar-se em pessoa importante e distante, especialmente quando há terceiros presentes. E João dirá “É uma pecha dela, embora eu pense que talvez o não faça por leviandade ou ligeireza, mas sim por falta de atenção ou apenas porque se fecha por estar demasiado maltratada (ou mimada?) e com receio de exteriorizar os seus sentimentos e o seu pensar, por autodefesa ou porque está ansiosa, preocupada ou com a pedrada." Ao que Sebastiana, subitamente séria, dirá "É como dizes" e mais nenhuma palavra sairá da sua boca, embora pense para consigo o pensamento que esconde por detrás das palavras ásperas ou desprendidas, quando não se descuida e no tom de voz transparece o jeito de quem está enamorada, de quem é menina em momento de fraqueza e carece de quem a respeite e acarinhe, embora João Baptista esteja seco dos seus xutos e pontapés e nada lhe permita concluir que não está errado nas suas leituras.

E por algumas vezes o sol apareceu no horizonte para lá desta janela e se pôs para lá da parede que lhe está defronte e muita água caiu das nuvens e chegou ao rio, enchendo a cidade de lama e areia, encoberta por um céu de chumbo debaixo do qual inúmeras aves têm voos rasteiros de pardal, como se fossem gaivotas m terra. E João Baptista lerá tudo isto e um filme de pedaços esparsos perpassará pela sua mente e pensará como as palavras enganam e os gestos iludem se não tivermos a chave certa que nos dê o sentido oculto e verdadeiro da vida e dos acontecimentos.

E João está sozinho, embora lá do fundo venha o ruído da televisão ligada que outros vêm, impedindo que ponha a música em crescendo que o envolva e pacifique, Vivaldi, Bach ou Mozart, sobretudo, ou mesmo as valsas vienenses. Está pois João sozinho, com um peso no lugar da alma, um aperto no lugar do coração, o corpo como se fora um monte de roupa em rodilha ou largada ali no chão, antes de ir para a máquina, cesto de roupa suja, melhor diria, usada ou gasta. Imagens velhas que renascem periodicamente. "Porquê, Sebastiana, me sinto por vezes tão sozinho, tão vulnerável, tão desolado, tão dependente dos outros, de ti, por exemplo, que penetraste na minha vida como a raiz entrando pela muralha deste modo esfarelada e desagregada, sem que se conheça bem onde acaba a pedra e começa o tronco velho e carcomido?" E Sebastiana Raio de Sol dirá "Não é assim que te quero, frágil e vulnerável, mas sim macho forte e duro que me cerre os cabelos esvoaçantes como o vento em cujas ondas navego sem porto nem maré.”

E João Bimbelo rir-se-á de si mesmo e da vida e de tudo, com um riso radiante que no entanto deixa mil traços negros dentro de si e lembrar-se-á de como são diferentes os sinais e as palavras, de como lhe parecera tímida a primeira e segunda vezes que a vira, de como lhe parecera uma pessoa sensível, culta, serena, inteligente e atenciosa, de como lhe parecera uma pessoa adulta apesar da juventude do rosto e da alma!

De repente João olha para a vidraça e verá para lá dela o negrume da noite e um caminho de luzes e, como se fora num espelho de breu, o reflexo esmaecido e vago da sua imagem à mesa, sentado no silêncio da madrugada, entrecortado apenas pelo escape livre e agressivo das motorizadas e pelo velho matraquear da lenta máquina registadora do seu pensamento demasiado rápido, deste modo disperso por outros caminhos e atalhos.

E Sebastiana Princesa perguntará “De que te ris, João, de que te ris se estavas com um ar tão sério e tão meditativo, porque mudaste de repente?" Então João rir-se-á novamente e dir-lhe-á "Porque se escondem tanto as pessoas? Porque te resguardas tanto?"

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E muitas vezes o sol, cada vez mais alto, apareceu para lá do horizonte e se pôs defronte, sucedendo-se os dias e as noites com muitas e variadas feições, sem que o escribador passasse para alem da página defronte dos olhos, muitas vezes escrita e retomada e amarfanhada. E passaram o Natal e o Ano Novo e também o Carnaval a caminho da Páscoa e as linhas por lá ficaram no fundo da pasta ou no bolso do casaco e poucos foram os escritos que nesse tempo surgiram e grandes os navegares sem porto nem maré, perdida a colorida janelinha.

Porque Sebastiana Mandrágora, Princesa dos Mil Sóis Em Pedra Dura, não passava de mulher com jeito de menina em permanente crise adolescente, em atitude e pose de quem gratuitamente pretende escandalizar ou afrontar o mundo, malbaratando a sua energia e encanto em tiradas de afirmação estéril.

E de tudo, para João Bimbelo Que Não Era Príncipe, ficará um travo amargo com sabor de areia, pouco interessando falar da amizade que se procurou como um bem frágil e precioso ou do céu coberto de poalha luminosa ou das noites cheias de sol e mar. Para quê pois continuar pensando em Sebastiana Balde de Água Fria ou recordar o seu canto ou a sua voz cativante? Para quê lembrar a macieza da sua pele morena ou a sua maneira de sedutora querendo ser seduzida, como no retrato à beira do lago? Tudo pertencia ao mundo das ilusões; tudo se perdera e já não interessava procurar a meada e a raiz dos (des)encontros para reencontrar o passado e nele o regresso ao futuro, nem falar da primeira e da Segunda vezes em que a vira nem dos tempos em que a esperara e ela aparecera, nem da "descoberta" dos sonetos de Shakespeare, nem da alegria pela sua presença no casarão de João Baptista, nem do seu jeito alegre e brincalhão, nem das jornadas de povoado em povoado ou à Praia da Liberdade Aprisionada, ou das vezes em que se sentara no chão ao seu lado ou repousara nele.

E João Que Não Chegara a Príncipe dirá que a felicidade não tem história e que todo o tempo é escasso para vivê-la e saboreá-la, acrescentando que a vida é feita de sonho (e também de mudança, como diria o poeta), embora vivido com os pés na terra, e que a vida é sempre feita de novos amanhãs, como dissera uma certa Maria Papoila Vai Com As Outras, embora fique sempre a mágoa ou a nostalgia dos sonhos que se sonharam e não viveram, do sol arrancado antes de florir.

Os sonhos que se não viveram pertencem ao mundo das ilusões e das sombras, dirá o narrador, e de tudo fica um pesado silêncio enchendo o ar e penetrando como breu em todos os poros e em todos os interstícios, bem temperado com um crescente desânimo para lá da viseira, juntando-se a outros pesos, fazendo surgir a pergunta se valera a pena encontrar e “conhecer” Sebastiana Maria da Pele Doce e Morena, que inspirara tantos bonitos textos que recebera com aparente agrado e lisonja e guardava num qualquer dossier, não se sabe bem porquê nem para quê.

E na recta final se mudou o discurso, sem boniteza, que não transparecia nestas linhas finais para encerrar com ponto mal alinhavado o solilóquio em torno de Sebastiana Princesa, dos Muitos, Cálidos e Ásperos Nomes.

Como quem arremata para que o tecido se não esfie e desfaça, levado pelo vendaval!

E retirando-se o narrador, foi encerrada a escribadura, no palco abandonado renascendo o silêncio em mar de aparente calmaria.
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1989.12 e 1990.03.13/16SETUBAL E PAÇO DE ARCOS
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                         A canção que in illo tempore Joana Princesa trauteava frequentemente

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