* Victor Nogueira
Neblinado e cinzentonho está o dia, não soalheiro. No quintal, vista da janela desta sala em que estou, a roseira está pintalgada de rosas amarelo-pérola. Para lá da árvore da borracha espreitam rosas avermelhadas.
Esta madrugada o relógio atrasou uma hora, felicidade suprema para quem me replica que terá mais uma hora para dormir. Quem não se atrasa nem espera por nós é a Vida; essa, indiferente, prossegue a sua marcha, sendo cada vez menos à nossa frente os primeiros dias do resto das nossas vidas, até ao silêncio final.
Hoje, que te escrevo, é o primeiro dia deste ano de 1994.
Hoje, que me lês, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa
é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver
cada vez menos primeiros dias à nossa frente. (1994.01.01)
Que propostas de leitura, que notícias, nesta manhã não soalheiro e com um leve nevoeiro para lá da janela?
Notícias do Bloqueio II
Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se á mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o significado do
que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos dedos
indiferente
medíocre
submissa. (Setúbal 1985)
Que amo e procuro em Penélope, vagueando pelas sete partidas do Mundo? E, na verdade, quem verdadeiramente é e onde está Penélope? Quem é "A" Penélope? Em que alto da madrugada a encontrarei? Que palavras novas para lá das que já lhe escrevi, para ela, remoçadas, inventarei?
O que amo em ti é a vida
são os campos, as encostas verdejantes
a cidade, os carros que passam
os animais, as plantas e as árvores
as montras iluminadas e coloridas
a chuva na vidraça ou no rosto
o sol, o mar, a brisa
o cheiro a maresia
o perfume das flores
.
O que amo em ti é
a verdade
a ternura amor que entre nós é
a camaradagem
o andar que percorre o corpo
sem segredos nem esconderijos
a novidade aventura
o frémito, o prazer, a paz
.
Somos milhares somos milhões
...........pelas estradas e pelos atalhos
...........pelos campos e pelos pinhais
...........pelas ruas e pelos becos
na cidade dos homens
................ombro a ombro
................frente a frente
................lado a lado
desencontrados (1982.01.16 Setúbal)
Teria qualquer sentido colocar ali o retrato de Penélope, sorridente e graciosa, como presença, pois não há marcas dela nesta casa do Mindelo!? Mas perante a ausência, que significado ganham ou perdem as memórias e os objectos?
Não preciso da fotografia para
me recordar de ti ou para me comover ou enternecer ao pensar em ti. Não é
preciso que os outros saibam que eu me lembro de ti. E não me recordo de ti por
causa da fotografia. Lembro-me de ti quando arrumo o armário da sala e vejo os
frascos que me deste. Ou quando abro o porta-moedas e encontro o pequeno
canivete. Ou quando reparo no colorido boneco do negro tocando trompete. Ou
quando vejo a saboneteira, ao utilizar o lavatório. Recordo-me de ti quando
barro o pão com o doce que me deste e que está no fim. Ou quando visto a elegante
e bonita camisa de flanela aos quadrados. São marcas tuas, a partir das quais,
conforme o dia, nascem outras recordações, enquanto para mim tiveres qualquer
significado.
Olho para a saboneteira e
lembro-me de Coimbra e da casa cheia de sol e do corredor com
"azulejos". Vou a Leiria e no jardim lembro-me que estivemos lá:
"Estive aqui com a Maria!"
E lembro-me do Porto e dos cafés barulhentos e da primeira vez que foste a
minha casa. Ou recordo a vez em que fomos ao Carregado ou a Santarém ou que fui
ter contigo a Coimbra. (…)
Porque o que é importante és tu e não a tua fotografia ou as tuas
"marcas", que sem ti nada valem. Quando deixares de ser importante
para mim, então não passarão senão de adornos ou de objectos utilitários no
meio de outros adornos e objectos utilitários.
A manhã escorreu com Penélope no meu pensamento. Mas outras necessidades mais prosaicas têm de ser satisfeitas, como preparar e cozinhar o almoço. Talvez lulas com puré instantâneo. E de seguida lavar e arrumar a louça. E depois, na companhia do fiel Fiesta, vaguear por aí, parando talvez à beira-mar ou à beira-rio, ouvindo música e continuando a ler as interesantes entrevistas de Oriana Fallaci a líderes políticos, feitas no idos de '70 do passado milénio: "Entrevista com a História". O tempo está insidiosamente frio e nada convidativo para andar a vaguear a pé.
Entretanto, ficam rosas, as rosas do quintalejo, no estádio deste domingo, o último deste mês de Outubro.
Consulto a meteorologia e ela indica-me que previsionalmente toda a semana será nublada e de chuva. Vamos ver o que nos trará, mais tarde, o S. Martinho, da castanha e do bom vinho, diz a popular sabedoria.
imagens captadas em 2019.10.27
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