* Victor Nogueira
Estava assim porque a tinha considerado sua igual e confiara nela e com ela procurara falar sem reservas. Parecia contudo evidente que ela jogava à defesa e que as palavras seriam para ela fogo de artificio e manobra de diversão por detrás das quais se escondia e protegia. Assim o julgava, apesar de poder considerar-se mau leitor dos factos e dos gestos, como outrora o fora de outras pessoas, nuns casos porque se ficara pelas palavras, noutros, como no presente, por ter procurado "ler” para além delas.
Talvez o considerassem presumido porque em determinada altura do seu relacionamento não acreditara em tudo o que ela lhe dizia, relativamente a ela própria e aos sentimentos que afirmava nutrir por ele: seria uma presunção diferente da que ela tinha, porque ele perante ela se descobrira, talvez cedo e desajeitadamente demais, talvez porque tivesse lido nela aquilo que desejara ler. E assim, conhecendo-lhe os sentimentos dele, seria levada a pensar que lhe bastaria dizer quem era para que ele largasse o trabalho ou interrompesse a reunião para atendê-la ao telefone, fosse do emprego, fosse da casa onde morava. Era simultaneamente verdade e mentira afirmar que pouco ou nada lhe interessava saber se ela estivera, estava ou algum dia poderia vir a estar "enamorado” por ele. Era de presumir que fosse adulta, crescida, responsável; então porque não haveria de acreditar no que ela lhe dizia e deixar-se de "poesias" e de imaginações!?
Recordava-a por vezes com uma grande ternura mesclada de inquietação e desassossego. Lembrava-se das primeiras vezes em que a vira, quando procurava conhecê-la, e de como se encantara por ela. Recordava-se das vezes em que pretendera envolvê-la numa longa e doce caricia ou a desejara como um homem pode ser desejado por uma mulher. Como esquecer a rede em que se deixara enlear, que ela muitas vezes parecera também tecer e outras rompera? Recordava o seu jeito gaiato, sorridente e brincalhão, sem esquecer os desencontros e as vezes em que ela disparatara ou faltara sem dizer água vai, apesar da importância que ele, parvamente, dera à sua presença e companhia.
Ela dizia-se amante da liberdade e no entanto não poucas vezes desrespeitara a dele, deixando-o a falar sozinho, com a refeição fria ou o fim de semana “estragado". Ela dissera preocupar-se com o efeito que os seus actos e as suas palavras poderiam provocar nos outros, por recear e não querer magoá‑los, mas não poucas vezes o magoara, sem que ele soubesse verdadeiramente distinguir quando falava a sério ou na brincadeira ou se estava apenas desatenta por feitio ou preocupação. Não podia esquecer-se das vezes em que ele lha entrara pela casa dentro, enchendo o ar de poalha dourada e refrescante, libertando a sua fragilidade, como ave inquieta na brisa que ela era.
Recordava-se disso e de muitas coisas e palavras, que gostaria tivessem (o)corrido ou acontecido de outro modo. E lembrava-se de algumas cartas, poucas, duas ou três, que lhe escrevera, arrumadas no fundo duma qualquer gaveta, porque resolvera deixar sedimentar as palavras, que deste modo, com o decorrer do tempo, haviam perdido o sentido e a oportunidade. Pensava ser natural que os homens e as mulheres procurassem uns nos outros amizade, ternura e carinho, considerava natural que os homens e as mulheres se sentissem mutuamente atraídos por serem de sexos diferentes ou que, se fosse caso disso, pudessem ir para a cama um com o outro, dum modo saudável, sem táximetro e tabela de preços consoante o serviço.
Mas nem sempre acontecia o que deveria ser natural, não poucas vezes porque muitas e variadas razões levam a renegar, condicionar, proibir e "regulamentar" a sexualidade e as suas manifestações duma forma que nada tinha a ver com a expressão saudável da vida.
E fora como uma expressão de vida e um cântico de alegria que ele a considerara, de forma aberta. No entanto e talvez demasiado cedo partira, quando em vão por ela esperara, para logo de seguida considerar o amor um bem que suaviza, quando alguém afaga a nossa vida, o que lhe dissera inopinadamente.
Há na vida um tempo e uma ocasião para tudo e para cada coisa, segundo expressava um belo poema judaico, e por isso talvez as palavras e os sentimentos dele tivessem sido expressos demasiado cedo.
Entendia ser natural que o desejasse como natural seria que outras mulheres o desejassem, mas não ela, que até era uma mulher que sabia "provocar" os homens, que o "provocara" não poucas vezes, embora dum modo que na altura lhe parecera "natural", sem maldade.
Contudo, o passar dos dias e os "desentendimentos” pelo que talvez fosse ou tivesse sido por ambos desejado fazia com que ela pensasse já não ser natural que ela "provocasse" e amesquinhasse (consciente e deliberadamente ou não) quem "provocara" (por ele não a entender), apenas porque teria tido com o homem com quem vivera experiências, isto é, vivências, humilhantes ou perversas, gerando situações que ambos não haviam conseguido ultrapassar (supondo que ela desejaria ultrapassá-las), por preconceito ou falta de simplicidade ou por utilizarem gestos e códigos diferentes. Situações que não haviam logrado superar em busca da amizade, do amor, da ternura, do prazer, da paz ...
É um facto que fora por ela seduzido e que, ao considerá-la sua igual, procurara sobretudo a sua amizade. Mas tendo ambos códigos e chaves de leitura diferentes, só veramente poderiam saber quem eram através da convivência, para descobrir o que estava para lá das categorias redutoras que (des)ajudavam ao entendimento das pessoas. Porque ela falava nos homens dum modo simplista, cómodo, mas irreal (são todos iguais, logo são todos tratados da mesma maneira); outros falariam nas mulheres (são todas iguais, andam todas ao mesmo, logo devem ser todas tratadas da mesma maneira).
E no entanto, por temperamento, vivência e "leitura", ele sabia que há homens e mulheres, com características comuns, é certo, mas que para além disso cada pessoa tem as suas características próprias, especificas, da sua cultura e classe social; para lá das "cómodas” categorias e definições redutoras, ele procurava o que existe de próprio, de pessoal, fosse no Zacarias ou na Carlota, fosse na Maria ou no Manel, independentemente de se não empenhar em "convencer” as pessoas, o que por vezes em nada facilitava a sua relação com outrem.
Falava com as gentes, é certo, mas não como apóstolo ou profeta; buscava aquelas com as quais se identificava, afastava-se das que nada tinham em comum com ele naquilo que reputava essencial, aceitava e tolerava as outras.
Sendo assim, é natural que tenha pensado e lhe tenha dito "gosto desta mulher, gosto dos filhos dela, postaria de com ela viver e compartilhar o dia-a-dia". É natural que ela lhe respondesse ter outros objectivos prioritários na vida e que ele estava à margem deles, apesar dele a considerar sua igual e procurar respeitar a sua liberdade. Admitia contudo que algumas vezes os seus gestos e atitudes para com ela pudessem parecer desmenti-lo, apesar de serem também condicionados pelos gestos e atitudes dela. Admitia pois que ela quisesse provar que sozinha poderia triunfar, sem a solidariedade dos outros, e que ele a desejava "controlar", a ela que estava farta de prisões, pressões e bofetões; por isso talvez tivesse sido erradamente levada a pensar para consigo mesma que o paleio é sempre igual e que no princípio são tudo rosas e arco-íris, para lá dos quais surgem os espinhos e as tempestades e os ventos ciclónicos.
Tudo bem, continuaria ele a pensar, ninguém o mandara ser apressado, sem dar tempo ao tempo, embora depois os erros se possam a vir a pagar caro, face à brevidade da vida e à impaciência dos mortais. É natural que os “sonhos" não sejam os mesmos para todos, é "natural" que para algumas pessoas fique a nostalgia dos sonhos que se sonharam mas não viveram ou falharam. Afinal os sonhos nem sempre são pesadelos e por isso podem também ser a expressão dos anseios com vista à concretização, talvez por vezes dum modo errado e desajustado, dos desejos de uma vida diferente, melhor, mais cheia e saborosa.
Como a que ele pensara encontrar nela e retribuir-lhe!
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Setúbal 1990.03.19/20
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(Victor Nogueira, sobre uma epístola de S. Sebastião aos gentios, em 4 de Outubro de 1989, a D.)
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