Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

domingo, 23 de junho de 2013

sobre setúbal 02

de Victor Nogueira (Notas) - Domingo, 23 de Junho de 2013 às 11:08



(exceptuando as fotos do pôr-do-sol e do homem a barbear-se na fonte de palhais, todas as outras são actuais - 2012 / 3013) 

2. - para além da vida quotidiana


em 1997 - De Setúbal falei nas linhas anteriores. Mas a cidade de hoje nada tem a ver com aquela que me encantou e seduziu, ponto de passagem dum estudante universitário de Angola exilado e desterrado  em évoraburgomedieval a caminho de Lisboa ou do Porto. Setúbal era a Avenida 5 de Outubro, com acácias floridas e as miúdas em bando, era o estuário do Sado  visto do Forte de S. Filipe, era o Castelo de Palmela visto de qualquer ponto da cidade tal como o estuário do Sado com a Serra da Arrábida   ao fundo, eram a Noémia e o casal A.G. Setúbal era também o enorme paredão ribeirinho cheio de carros ao entardecer ou de pescadores de cana, com o pôr do sol sempre variado espelhado nas núvens ou cintilando nas águas do rio. Setúbal eram as praias, o desejo das praias que se vieram a revelar desagradavelmente frias e de acesso difícil.
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As acácias floridas, rubras ou roxas, a luminosidade do ar e o céu azul faziam lembrar Luanda, tal como o Estuário do Sado, visto do Castelo de S. Filipe, se  assemelhava à Baía de Luanda vista da Fortaleza de S. Miguel, com a península de Tróia confundindo se com a Ilha do Cabo.
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Uma cidade são as pessoas, as pedras, as casas e a paisagem circundante. Mas as pessoas de Setúbal revelaram-se uma desilusão. A cidade reúne a dimensão humana das distâncias dentro de si própria das cidades pequenas com o individualismo  caracteristico das grandes cidades onde cada um trata de si, sem a solidariedade dos vizinhos mas, paradoxalmente, com a coscuvilhice e maledicência destes: todos sabem de todos mas cada um trata de si. Nada da camaradagem que encontrei entre as gentes do Barreiro e nas aldeias do alentejo, nada da cordialidade que muitos anos depois encontrei na covilhã e nas vilas da beira baixa ou em lamego !
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Setúbal, destruída pelo terramoto de 1755 e rapidamente reconstruída, do passado pouco conserva. E o pouco que tinha em edifícios está em ruína e demolição aceleradas. Se é verdade que o Marquês de Pombal não veio a tempo de reconstruir a cidade ao jeito racionalista, Mata Cáceres, o Presidente socialista desde 1986 [até 2003, substituído pela CDU],  tem sido um terramoto que permite que a memória da urbe seja arrasada: moinhos de vento, fábricas conserveiras, bairros como o Salgado ou de Santos Nicolau... E se o parque verde da lanchoa foi construído, embora amputado em área, ("uma loucura dos técnicos da câmara", [e do pcp. subentendia-se] como então declarou e registaram os jornais)  foi porque à sua substituição por betão e asfalto se opuseram então o pcp (apu), maioritário na junta de freguesia de s. sebastião, que com os seus 50 mil moradores  tem metade dos habitantes e dos eleitores do concelho). Mas um olival perto, preservado pelos moradores e pela anterior maioria da apu/pcp, não escapou ao terramoto dos socialistas e do manuel do alcatrão,  como é conhecido
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Persistem, esses sim, os bairros de lata, como o Mal Talhado, da Cova do Canastro, da Monarquina... Se interesse há por estes bairros, não é porque os seus habitantes mereçam melhores condições de vida mas porque se situam encravados em áreas apetecíveis para a especulação urbanística, a mesma que pretende arrassr o bairro azul (e a belavista), de habitação social e vista priviligeada, para dar lugar a habitação de luxo.. Nos esteiros e nos estaleiros navais desactivados, as embarcações típicas de outrora apodrecem afundadas no lodo ou na praia, sem que a Câmara recupere algumas delas, como outras na Península de Setúbal o fazem.
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Uma cidade é também o seu traçado e a paisagem circundante. Que resta de Setúbal? O Castelo de Palmela e o Forte de S. Filipe estão encobertos por cortinas de prédios altos, iguais em qualquer cidade e sem nada que a distinga. O mesmo se pode dizer do estuário do Sado e da Serra da Arrábida. A cidade voltou as costas ao rio, que os seus habitantes não desfrutam porque entretanto o porto fluvial vai crescendo e acrescentado à barreira física que já era a linha férrea. À beira rio, o horizonte é cortado e abafado por viadutos e muros gradeados, como nas fontainhas (bairro de pescadores) ou na vila maria. Lisboa alinda-se e Setúbal desfeia se com o lixo dela proveniente.
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É verdade que uma nova camada consumidora surgiu e assim as discotecas e os pubs crescem na parte baixa, sobretudo a poente da Luísa Todi. Mas a vida associativa decresce, os cinemas encerram, a companhia de teatro residente fecha-se em si mesma. Em contrapartida aumentam as situações de marginalização ou exclusão sociais, florescendo as prostituições infantil e feminina, bem como o tráfico e o consumo de droga.
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A várzea, solo agrícola fértil, apesar de protegido, é ocupada paulatinamente por prédios, betão e asfalto, acabando com as hortas e laranjais e quintas que davam origem a laranjais e doçaria de nomeada. Lembro-me duma reunião da Assembleia Municipal em que um vereador do ps argumentava contra as proibições da Reserva Natural do Estuário do Sado, uma simples linha numa carta topográfica, argumentava ele (que se deslocaria livremente ao sabor dos interesses da especulação urbanística, penso eu seria o seu pensamento oculto). (Notas de Viagem, 1997)

3 . - Na casa de Setúbal, no antigamente
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1980
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Amanhã vamos até Setúbal, para envernizar o  chão da casa, arrumar umas coisas, receber os ordenados e concluir os inquéritos do corrente mês. Devemos lá ficar até cerca de 6 de Setembro (A D. Maria e o Rui Pedro ficam em Évora). Depois regressaremos para acabar os preparativos para a mudança, em meados do próximo mês (salvo erro a 17 tenho serviço de exames). Vamos ver se nessa altura já funcionam os elevadores. (NSF - 1980.08.28)
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1986 (ano do divórcio)
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O Rádio Clube de Setúbal transmite música antigota: há pouco, p.ex., El Reloj, de António Prieto, agora Et Pourtant, de Charles Aznavour. Está um fim de dia cinzento e frio, embora a cozinha esteja cheia de luz, como se fosse dia; estou encantado com os girassóis colhidos na berma da estrada e que alegram a nudez e o ascetismo desta casa, agora entregue apenas a mim. (MMA - 1986.12.11)
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Chove agora a cântaros e tenho saudades do casarão de Évora, quando ouvia a chuva bater no telhado, encanto que me está vedado neste prédio de betão armado, onde muitas vezes só dou por ela quando chego lá abaixo à rua [largo] e ela cai em rajadas ou deixou a marca no asfalto molhado. (MMA - 1986.12.14)
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 Olho pela janela da sala e o campo florestado estende se até ao horizonte, aqui e além cortado por aglomerados populacionais como o Faralhão, Praias do Sado ou Manteigadas, para além dum e outro casal. [Assomando à varanda, para a esquerda, o castelo de Palmela] (MMA - s/data [ 1986.12])
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1988
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Olho pela janela nesta tarde soalheira, do alto deste nono andar com os campos, as casas e os carros minúsculos lá em baixo [na Avenida Bento Caraça]. (CTT b - 1988.03.06)
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1990
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Já o sol e a lua se puseram (...) o que significa que é um novo dia, oscilando entre o sol quente e o cinzento nublado ameaçador de chuva. Estou partido, pois andei a mudar estantes para ver se consigo arrumar em novas prateleiras os livros que proliferam como coelhos. (MBC - 1990.09.19)
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1993
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Eis-me de novo regressado a Setúbal City, sentado aqui defronte ao computador que vai registando os meus escritos, quando me não auxilia noutras tarefas ou é meu companheiro de jogos, os mais variados. Às vezes, nalguns programas,  fala comigo, em inglês. De qualquer modo não substitui um livro, que nos acompanha para qualquer lado, debaixo do braço, na pasta ou dentro dum bolso que não seja ... bolsinho, nem substitui o prazer de sentir no ar e na pele a presença de outrem.
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Eis-me pois regressado de novo a Setúbal, sentado aqui no meu "escritório-biblioteca-armazém",  ouvindo o eterno bater da janela nas calhas e os ruídos das obras nos prédios que estão construindo aqui ao lado e que tiraram a vista para o Jardim da Lanchoa ao pessoal que mora até ao 5º andar. O que não é o meu caso, alcandorado que estou neste 9º andar, dos últimos lugares do lugarejo a ser submerso se algum dilúvio acontecesse.
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 De que falar mais? Em Setúbal é tempo da Feira de Santiago, onde fui duas ou três vezes e onde sempre vou encontrando gente conhecida para dois dedos de conversa. Este ano há apenas uma exposição dedicada a uma das celebridades desta terra, que foi a cantora lírica Luísa Todi. Falta-me ver a parte da cerâmica e olaria, embora este ano já tenha comprado o recuerdo, cerâmica dum país andino ou como tal vendida. Mais uma bonecada ali para uma das estantes, para dificultar a limpeza do malfadado pó que mal acabado de limpar logo renasce dum modo que faria inveja à capacidade reprodutora dos coelhos ! (MMA - 1993.08.03)
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Aborrecem-me os fins de semana, especialmente os que são como hoje, pois vou ficando farto de não ter uma doce, florida e agradável companhia, no mínimo para os passeios ou idas ao cinema ou teatro. De resto estas vão sendo cada vez mais escassas, pois aqui em Setúbal não existe teatro e não me dá para ir ao cinema, ao contrário do que acontece quando vou a Paço de Arcos. A televisão e o vídeo têm  também responsabilidades no cartório, apesar de nada substituir a visão dum filme sem cortes de imagem numa sala em condições, que aliás vão escasseando, substituídas pelos vãos de escada em centros comerciais. É mesmo uma designação apropriada para as desconfortáveis mini-salas de que estou falando.
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Ontem fui ás compras, arejar o dinheiro. Comprei mais um relógio de parede, muito original, para substituir um outro de estilo mais "barroco", o da sala, que só tem trabalhado quando lhe apetece (talvez por ser "fino" demais) e que tocava doze músicas diferentes, uma a cada hora, dum modo que entoava por toda a casa, irritando a Susana. Para além disso comprei dois CD dos Beatles, o chamado Duplo Álbum Branco, por alguns críticos considerado dos melhores, conjuntamente com o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band,  Só não há meio de comprar um armário para arrumar a louça e um carro novo, que o meu velho Renault 5 já está muito enferrujado e falho de confiança para longas viagens, especialmente para aquelas que no Verão faço lá pelo Norte. 
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Este fim-de-semana não me deu para arrumações. No anterior resolvi cuidar do meu "jardim" ali na varanda da sala, cujas plantas já estavam demasiado crescidas, invadindo para além disso vasos alheios. Foi um desbaste enorme, coitadinhos dos vasos, que ficaram quase carecas. Bem sei que esta não é a melhor altura para tratar da saúde às plantas, mas aquilo já parecia uma selva ou matagal, onde mal me podia mexer ou sentar nestas quentes noites de verão, pois é um local onde normalmente corre uma brisa agradável. No entanto, para a próxima Primavera, tenho de pensar em reservar uma parte para agricultura, não de cebolas ou batatas, que é pequena a herdade, mas de alface, salsa, coentros, piripiri e espécimes similares, para os meus cozinhados. (MMA - 1993.08.07)
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  Estive há pouco a regar as plantas e gosto muito do cheiro da terra seca depois de molhada. Olho pela janela e verifico que as vidraças estão precisando duma limpeza. É estranho, pois morando num sítio tão alto, não consigo livrar-me da poeira. Quando estreamos esta casa nas varandas havia montículos de terra, possivelmente trazidos pelas correntes de ar ascendentes.
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Olhando pela janela vejo os campos ao longe, lá embaixo, cada vez mais afastados pelas casas que se vão construindo; daqui a uns tempos deixarei de morar no limite oriental da cidade. Mas no Verão o único verde é o dos aglomerados de árvores (sobreiros e azinheiras ?), pois a terra ressequida é simplesmente castanha. E á noite, em qualquer altura, a vista é encantadora, com a claridade da iluminação das ruas, das casas e, quase no horizonte, das fábricas da zona industrial da Mitrena., para além do luzeiro cintilante das luzes das povoações dos arredores.
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Como sempre o vento faz vibrar as janelas nas calhas, dum modo monótono, mesmo irritante por vezes. "Música" á qual um dia destes tenho de pôr fim. Para além disso tenho por vezes o acompanhamento da voz esganiçada do cão aqui do vizinho do andar de baixo. Para lá da janela, quando aberta, chega o ruído dos carros que passam  lá em baixo na avenida, conjuntamente com o falar das pessoas ali no Parque da Lanchoa, cavaqueando em noites frescas até altas horas da matina. O cãozinho recomeçou os seus latidos; ao menos, eu  não incomodo a vizinhança quando não estou em casa. Mas o cãozinho, ah! o cãozinho ... esse ladra ... quando os donos estão ausentes. !
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Embora  esteja calor,  aqui em casa está um pouco mais fresco do que durante o dia na rua. Últimamente a rua parece um forno, como se estivéssemos no Alentejo, com uma brisa sufocante e uma luminosidade que fere o olhar. De resto não sei se tenho a vista mais sensível, mas a verdade é que há dias em que o brilho do ar é tão intenso que não consigo ler o jornal ao fim de semana além no cimo das escarpas de S.Nicolau., com o estuário do Sado ao fundo e a Serra da Arrábida à direita.  Mas aqui á noite, na varanda da sala, corre uma brisa acariciante, conjuntamente com o cheiro da terra molhada de que falei.
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Hoje estou  novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" a casa ficou vazia, aliás como sucede quando o Rui e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. Quando me dá a "pancada" normalmente vou sair,  andando por aí. Ou telefono ás pessoas conhecidas. Mas hoje nada disso fiz. 
MMA -1993.08.10)
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Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.
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Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui  e para as quais me vem chamar a atenção com frequência.
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Nem parece que houve fim de semana. Estou  muito cansado e dormi à tarde (coisa rara), até ser acordado pelo telefonema da Christine, uma colega e amiga  da Susana. 
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Um certo pudor ou receio de expressar os meus sentimentos é que me impede de dizer "Estou triste",  (ou "Estou vazio" o que seria imagem mais apropriada) embora procure que a minha voz e conversa o não demonstrem. 
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É meia-noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala.  (MMA - 1993.08.15)
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 Antigamente as pessoas escreviam muito e as cartas eram meio de transmitir notícias e muitas delas, com maior ou menor valor literário, tornaram-se testemunho dos factos, acontecimentos, ideias e sentimentos. Mas hoje, hoje as pessoas telefonam ou encontram-se, devido à facilidade e rapidez dos transportes e das comunicações, e o tempo é pouco, paradoxalmente, devido à sobrecarga do que se gasta em transportes, sentado frente à TV ou em tarefas domésticas.
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 O mesmo sucede com o convívio e a conversação: por vários motivos os cafés e as tertúlias desaparecem, só se conhece o vizinho da frente ou do lado, quando se conhece, e as pessoas metem-se na sua concha, casulo, carapaça ou buraco. Muita gente junta, ao alcance da mão ou da voz, não significa que estejamos mais acompanhados e humanizados. (MMA - 1993.08.19)
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O calor continua, com uma intensidade tal que a sede aperta e os joelhos fraquejam. Aqui na Tapada do Mocho (Paço de Arcos) o sol bate na fachada da casa durante toda a tarde. Em Setúbal não sinto tanto calor pois durante o dia normalmente não ando na rua. Por seu lado no Departamento onde trabalho existe ar condicionado e em casa sempre se abrem as janelas e, desde este ano, o calor em casa ameniza-se com a refrigerante ventoinha que comprei, que me refrescou muitas vezes. (MMA 1993.08.20)
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Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da Susana também estava aberta. De qualquer modo  não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente.
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O primeiro dia de trabalho está terminado e parece que as férias foram há muito tempo. O regresso foi como sempre: bacalhoadas para a direita, algumas beijocas para a esquerda, um sucinto relatório das mesmas com perguntas idênticas ao(s) interlocutor(es)  e interrogações sobre as  fotografias de férias. Vá lá  que a arquitecta Nina, que foi ao Brasil ver a família e mostrar a  Mariana, a criancinha que é o enlevo dela como mãe babosa,  não se esqueceu das moedas para a minha colecção.
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 Para além disso foi um dia de grande chateação. A minha secretária estava limpa e arrumada, tal como a deixara. Embora tenham deixado de distribuir-me trabalho, a minha categoria profissional dá-me liberdade para apresentar e desenvolver propostas e projectos de trabalho. Mas isto exige um mínimo de meios que não me dão ou retiram., para me cortarem a veleidade de fazer qualquer coisa (pois continuo liminarmente a recusar os convites para mudar-me para o ps, estilo vira-casacas, como muitos ex-camaradas  meus o fizeram, em bandos e revoadas, especialmente entre o pessoal operário e auxiliar). Há uns três anos tiraram-me o apoio administrativo e há dois meses o computador.  Sem ovos é difícil fazer omoletes. Ás 17:00 horas, farto da pasmaceira geral, de conversa para encher tempo e sem nada para fazer, disse adeus ao pessoal e fui curtir a minha chateação e desalento para o Jumbo, para comprar fruta, peixe, iogurtes, queijo, manteiga e algumas coisas mais.
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Hoje estou nos meus dias de pedrada. E quando tal acontece aborrece-me estar sózinho. embora não me apeteça estar com qualquer pessoa. Como frequentemente a vizinha Maria apareceu aqui ao fim da tarde, com o filho mais novo, que é um miúdo muito engraçado e palrador, com uma grande amizade por mim, o que de resto acontece com muitos miúdos. Tenho sido uma espécie de pai e mãe da Maria, que aliás é a única vizinha que se oferece para me ajudar ou que me traz presentes: um bibelot, um queijo, fruta ou uns enchidos da terra, um prato de arroz doce ou um petisco do Alentejo.  Mas hoje eu estava com uma grande chateação de modo que nem os problemas financeiros da  Maria nem a sua simpatia e preocupação pelo meu mutismo e ar fechado me levantaram o moral.  Fui telefonando a outras pessoas, mas nem por isso a neura passou.
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Pois uma coisa são as amigas e os amigos, os colegas de trabalho, os filhos. Outra, bem diferente, é a namorada, o amante, a companheira, que permite a expressão duma outra parte do nosso ser e a expansão da nossa personalidade.
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Não gosto de estar sózinho e por isso gostava de ter uma namorada em quem pudesse confiar, que estivesse ao alcance da voz e do gesto de amizade e carinho mútuos, que me procurasse, que me acolhesse e que ficasse contente quando a procuro. Uma namorada para quem eu fosse tão importante como   importante ela seria para mim. Porque todas as idades são boas para as pessoas se enamorarem com entusiasmo, serenidade e leveza de coração e não com este desalento. Porque uma coisa é saber com segurança que naquele dia ou naquela hora vou estar ou sair com ela e assim organizar o dia-a-dia, domesticando o desejo de estar com a pessoa de quem gosto. Outra, bem amarga, é a incerteza, a insegurança e  os mal-entendidos relativamente à pessoa de quem gostamos  e que escolhemos de entre todas. (MMA - 1993.09.08/09)
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É um novo dia. de manhã choveu mas agora á tarde o sol despontou. Hoje resolvi ficar em casa para preparar a reunião sindical de amanhã e programar o trabalho até ao final do mês. Tenho oito dias por mês para actividade sindical sem desconto no ordenado. Entretanto, na próxima quinzena, terei reuniões em Coimbra e no Porto, para além de uma série de plenários na Câmara de Setúbal, por causa do processo negocial com o Governo. (...)
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 O carro já está consertado e sempre consegui consulta na médica. É uma senhora muito simpática mas começamos sempre por uma longa conversa sobre variadíssimos assuntos, da vida em Setúbal à política, passando pelos filhos. A parte final, essa sim, é dedicada à exposição e diagnóstico das minhas maleitas. Resumindo e concluindo, para além do check-up anual conveniente para as pessoas da minha idade, mais uma série de exames por causa das maleitas para prevenir ou remediar. E uma nova sessão de  fisioterapia, que o ano passado me fez passar os meses até agora com menos problemas provocados pela coluna. O avio dos remédios deixou-me no entanto pasmado. Não só estão cada vez mais caros como diminuem grandemente as comparticipações do Estado. Entretanto ela disse-me que tínhamos direito a quinze dias anuais em estâncias termais, para tratamento, sem colisão com os dias de férias. Tenho de informar-me melhor, para passar uma temporada a tratar da coluna, repimpado, sem preocupações com arrumações de casa e preparação de refeições.
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Fiz para o almoço pernas de frango estufado com arroz de manteiga. Já ando a ficar farto de enlatados e congelados, que às tantas sabem sempre ao mesmo. (MMA - 1993.09.09/10)
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Depois de chegar a este casarão onde vivo, pus a Cesária Évora no leitor de CD's e dei comigo a bailar ao som da música de Cabo Verde, maneira de descontrair e quebrar a tensão e os rios de lágrimas.  De resto a música serve muitas vezes para me descontrair. Agora, estou na ressaca, como quem apanhou uma sova. A propósito, comprei um CD com música do Mendelssohn para  oferecer á Maria do Mar. Trata-se de Sonho de Uma Noite de Verão e de Sinfonia A Italiana.  (..)
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A lavagem da louça suja fica para amanhã. (...)  Resolvi fazer uma "bruta" omolete de camarão com cebola picada, salsa e queijo ralado. Não ficou mal, mas deveria ter posto menos azeite na frigideira. Menos sorte tive ontem, que me distraí e não ouvi o marcador de tempo, pelo que os "raviolli" pegaram ao fundo do tacho e ficaram um amontoado esquisito e sem graça. (MMA - 1993.09.10/11)
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Já é meio da tarde. Enquanto escrevo estou distraído. Como sempre fui comprar os jornais, mas desta feita não fui lê-los para debaixo duma árvore na estrada da Figueirinha ou no cimo das escarpas de S.Nicolau, com o Rio Sado e a Serra da Arrábida ao fundo. Não, desta vez fiquei-me pelo porto de pesca, mas como o tempo se tornara de trovoada quente e desagradável, mudei para debaixo duma árvore do degradado Parque José Afonso, agora transformado em parque de estacionamento automóvel, embora hoje quase vazio. (...)
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Depois, bem depois resolvi almoçar um prato africano, moamba de galinha com farinha de pau, num restaurante aqui perto de casa. Faço isso normalmente uma vez por semana, para variar e porque me aborrece tomar as refeições sistematicamente sozinho. Mas desta vez o único comensal era eu, mas ao menos comi um prato que não sei cozinhar e não me preocupei com a arrumação da cozinha. (MMA -- 1993.09.10/11)
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Afinal as ameaças deixaram de sê lo, pois acabei de assomar à janela e lá em baixo o asfalto apresenta se molhado e as pessoas passam de guarda chuva aberto. (...) Tudo indica que passarei este domingo em casa, lendo, organizando as fotografias de férias e vendo algum filme ou uma cassete de vídeo que comprei, sobre fotografia. (MMA - 1993.09.12)
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Como resultado da segunda consulta descobri que estava com uma depressão inibida (vejam lá o nome que os médicos arranjam), pancada que se agrava quando regresso de férias, ao emprego e os miúdos a casa da Celeste.
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De qualquer modo na 2ª feira à tarde resolvi fazer uma breve passagem  pelas brasas antes de voltar para a Câmara e de repente o meu cérebro desbloqueou-se e deixou de funcionar como roda sem destino. Pelo que encaro as coisas com menos dramatismo. Por muito que me desagradem o emprego, algumas pessoas que me rodeiam ou seja mutilante  estar  sozinho  ano após ano desde que me divorciei. De resto não posso permitir-me ficar na fossa, se não quem trata de mim? Assim um tipo nega uma parte de si mesmo e da sua sexualidade, põe a viseira e a máscara sempre sorridente á flor-da-pele, mete-se na mala e põe o pé no caminho, em busca de melhores dias, com alegria e sol no coração. 
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Na 2ª feira coube-me a vez de servir de ama-seca ao Rui, pois tive de ir com ele à escola da Belavista, onde pela última vez dei aulas há 12 anos, para mudar para a turma onde ficou a maioria dos colegas que foram transferidos com ele da escola do Aranguez. Na sala onde eu dava Geografia agora é o Conselho Directivo e alguns empregados ainda me reconheceram, o que não deixa de ser agradável. O que não me agrada é ele ficar possívelmente com aulas á tarde e não sabiam ainda se também ao sábado de manhã. Devido á falta de salas de aulas, o turno funciona salvo erro com seis horas seguidas, o que é uma violência.  De resto nesta escola foi a única vez que dei 22 horas de aulas semanalmente, sem aulas nocturnas e apenas num turno, o da tarde, o que me custou imenso. Felizmente que a meio desse  ano  fui para a Câmara do Barreiro.
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Hoje é feriado municipal, dia do Bocage. Por pouco passava-me desapercebido. Houve um ano em que me esqueci  do raio do feriado, só me apercebendo dele quando cheguei ao edifício da Tetra e bati com o nariz na porta envidraçada!
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(...) Na Praça do Bocage há uma alva barraquinha estilo mourisco, inaugurada hoje, contendo as principais peças do Plano Director Municipal, agora em fase de discussão pública. Lá estava a minha querida directora, rodeada de alguns colegas nossos, que ainda de longe me fez  um correspondido aceno de mão com um sorriso de derreter o coração do mais incauto, aceno que se transformou numa amena cavaqueira quando cheguei ao pé deles e da barraquinha.  (MMA 1993.09.15)
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Afinal ontem, 5ª feira, acabei por não ir à reunião sindical em Lisboa; o tempo estava chuvoso e mau para os meus inflamados gorgomilhos. E depois, perante a crónica indisponibilidade dum dos carros do sindicato, decidi não levar o meu velho R5. Coitado do senhor Rui, o electricista-auto, que foi trabalhar na manhã do feriado municipal, contra a minha opinião, para mo entregar a tempo, para eu não faltar à dita reunião.
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Mas hoje é que choveu mesmo, aumentando a minha rouquidão. Que linda despedida o Verão nos tem dado nesta arrancada final para o Outono! Ali a avenida Bento Jesus Caraça parecia um rio caudaloso e lamacento, com água pelo passeio, devido aos boeiros entupidos. Felizmente que me precavera previamente com as botas caneleiras pelo que não precisei de andar com bote!
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Aproveitei a pasmaceira do serviço para terminar a organização dos negativos fotográficos e a relação das cópias a efectuar. Para além disso continuei a ler o manual de instruções e a praticar numa máquina de dactilografia eléctrica (margarida), que ainda não domino completamente. É mais complicada do que a que eu tinha no serviço e que desapareceu misteriosamente do meu armário e do edifício no verão do ano passado. Um dia destes quis escrever  na da Fátima (secretária da minha chefe do planeamento urbanístico), mas apesar das breves explicações dela e do Carapeto, não dei conta do recado, pois não é á primeira que se dominam as funções todas, pelo que desisti e limitei-me a enviar á Maria do Mar um postal com vista para o Estuário do Sado e Península de Tróia. 
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O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, onde é intérprete,  me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais. Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.
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O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal  segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura!
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Ontem, que já é anteontem, a Maria do Mar falou sobre a felicidade em contraponto a uma pretensa atitude de infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do modo que eu preferiria.  Diferente da infelicidade é o desencanto pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos de alegria e serenidade. Alguns deles com ela, apesar de tudo. E talvez parvamente e sem  razão eu persiga nela a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível ter sido (ser) feliz com ela, como amigo ou como amador e ser amado. Mas isto só teria resposta se outra fosse a nossa relação. A isso,  só a convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.
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 Apesar de  tudo acredito que é possível as pessoas serem felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os homens e as mulheres não foram feitos para estarem sózinhos ou viverem solitáriamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la.
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Todos temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo. Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou levantamos á nossa volta. MMA 1993.09.16/19)
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Amanhã vou reiniciar a minha aprendizagem com as folhas de cálculo (matemático), interrompida há semanas e recomeçada hoje com umas breves lições do Luís, o informático do STAL. Entre as minhas actividades e responsabilidades extra-laborais  está a coordenação e participação num grupo de trabalho sindical de quadros técnicos da Administração Local. Ora, antes de partir para férias, uma colega nossa ficou de trabalhar uns dados, para permitir a sequência do nosso trabalho relativo à reestruturação de carreiras e revisão do sistema retributivo.  Só que já lá vão umas seis semanas sem que ela tenha feito qualquer coisa, porque anda deprimida. De modo que tenho de ser eu a tratar do assunto, já que não posso permitir que as minhas depressões me façam andar pelos cantos durante muito tempo.
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Entretanto hoje resolvi fazer o que foi o terceiro bolo da minha vida, desta feita um bolo mármore. Das vezes anteriores foi pão-de-ló. O bolo come-se, não ficou muito mal.  De qualquer modo só poderei lavar a forma depois dele acabar, pois ficou agarrado ás paredes da dita cuja, apesar de untada com margarina (acho que faltou passar as paredes  com farinha). Para além disso a parte de cima não ficou nivelada, antes parecia o mar agitado em dia de vento, aos altos e baixos. Pois é, preciso é não perder a calma!
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A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ás mousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.
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O fim de semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para  o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sózinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são  duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem  norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.
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Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!
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Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também  utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA 1993.09.20)
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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. Liguei o televisor aqui do escritório, que transmite uma telenovela, para dar notícia do começo de mais um episódio da 6ª série de O Polvo, sobre a Mafia Italiana.
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Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu á tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo. (MMA - 1993.09.25/26)
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1994
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Hoje, que escrevo á Maria do Mar, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que ela me lê, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias á nossa frente.
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(...) Gosto muito dela e ás vezes parece-me que sem ela a vida não tem sentido. (...) Mas ela constrói uma fortaleza, perante mim e á sua volta, cheia de incerteza, nevoeiro e "sentinelas". Mas eu não quero conquistar fortalezas nem convencer sentinelas. Queria apenas que fôssemos um campo aberto onde o mar e a brisa corressem livremente. Queria apenas e simplesmente estar com ela, sem armaduras e sem este cansaço e sem esta fartura duma vida cinzenta e sem horizontes.(...)
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Procuro não ter pena de ninguém. De mim rio-me com frequência (ainda não perdi a capacidade de  fazer humor com as minhas desgraças e desgostos e talvez seja por isso que ainda me vou mantendo à tona). Dos outros não me rio. Procuro ajudá-los, ser-lhes prestável, dar-lhes a minha solidariedade. Sobretudo com os actos e menos com  palavras, por muito belas e grandiloquentes que sejam.  
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E pronto, o 1º de Janeiro de 1994 é quase passado e acabaram as transcrições de textos que jaziam aqui no computador.  Olho pela janela e o céu já escureceu. Ouço o leve ronronar do ventilador do computador e o ruído das motorizadas lá em baixo na avenida. Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. Vou fazer o jantar e depois sentar-me-ei frente à televisão para ver o filme "Aconteceu no Oeste", para além do último episódio da série policial britânica "Último Suspeito". Entretanto serão altas horas da madrugada (MMA 1994.01.01)
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Está uma tarde fria e cinzenta. Almoçamos em casa do Zé e da Ana. O Zé e o sr. Caldeira cantaram músicas do Alentejo; o pai da Ana tem uma voz muito bonita. O Rui também abrilhantou o almoço, com a sua viola, que já toca bem. Com os seus truques de magia e cartas, bem poderia começar a pensar em animar as festas de bairro!
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A Susana foi dar uma volta; ficou de vir às seis para irmos ao Jumbo comprar a prenda para o César, o filho da Ana e do Zé (de Pias), que hoje fez 3 anos.  Quanto ao Rui, comigo, é mais caseiro e agora anda para ali aos saltos com o Bruno, desalojados que foram do computador, e em animada conversa com a Catia e a Aida, as filhas mais velhas da Ana e dum outro Zé (da Amareleja), com quem vivem. (MMA 1994.01.06)
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Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sózinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal.
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De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda  os vedantes metálicos para as janelas.
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(...) Antigamente, aos fins-de-semana, ia  até à Serra da Arrábida ou até ao morro de S.Filipe ou para a Estrada da Comenda, o carro debaixo da sombra duma árvore para ler o jornal e para ouvir música. Mas agora fico-me pelo descampado no cimo das escarpas de S.Nicolau, onde as árvores ainda não cresceram e para onde agora vão muitos carros, demasiados para o meu gosto. Aliás cada vez mais a cidade está sendo separada do rio, por causa do aumento do Porto de Setúbal, e cada vez mais nos arredores as casas substituem as árvores ou o arame farpado impede o acesso aos campos.
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E nas minhas longas e solitárias noites leio, vejo filmes ou estou agarrado ao computador, quando não ao telefone. Deito-me sempre muito tarde, entre as 2 e as 5, e depois o tempo para dormir é pouco, pois levanto-me entre as 8 e as 9. Vantagens de morar a escassos metros do local de trabalho e de ter horário flexível. Há dias em que ando bêbedo  de sono, mas  á noite é que faço algumas das coisas que me dão prazer (ler, escrever, conversar, ver cinema, aprender coisas novas),  que normalmente não faço durante o dia, dividido que estou, muitas vezes sem prazer,  entre a actividade sindical e o trabalho  na  Câmara.
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Aliás cada vez mais me custa ir para a Câmara, onde me dou bem com toda a gente. Mas de qualquer modo já nos conhecemos a todos uns aos outros: as  conversas, as reacções e os  tiques de cada um. Depois, no meio disto tudo, há os filho(a)s da mãe, que sorriem mas pela calada espetam o dente e o punhal afiados.
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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas, onde continuo a ir com a Arqª. Arminda ou com a Arqª. Nina e onde vai o pessoal da Secretaria. E isto para não falar das chefias, que já  deixaram de se misturar com o maralhal.
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Nunca gostei de ser professor, mas era uma profissão com algumas vantagens: havia sempre caras novas (alunos e professores) e havia tempos livres para andar na rua, nas horas em que o resto da malta estava atrás  dum balcão, sentado a uma secretária ou preso na oficina. (MMA 1994.02.20)
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Pois é, lá se vai dentro em breve o meu privilégio de trabalhar a escassos metros de casa; o Presidente fez uma reunião com o pessoal do Departamento de Habitação e Urbanismo para comunicar que dentro de dois meses vamos mudar com armas mas sem bagagens para um edifício novo, com quatro ou cinco pisos,  no centro da cidade, perto dos Paços do Concelho. Aqui em cima estamos distribuídos por dois pisos no que também esteve para ser um centro comercial, agora transformado em autêntico labirinto com portas, corredores, escadas e paredes envidraçadas por todo o lado. Uma autêntica ratoeira em caso de sinistro mas, como se costuma dizer, em casa de ferreiro espeto de pau.  Pois é, sempre é melhor irmos para o Centro da cidade, não só porque há mais economias nas comunicações entre os serviços e nas deslocações dos munícipes, mas também porque há mais vida e movimento na Baixa. (MMA 1994.02.23)
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Se me ficasse apenas pela aparência do que os meus olhos vêm, a neblina e o cinzento que envolvem a cidade prenunciariam um dia frio, de chuva miúdinha.  Mas o suor goticular que permanece à flor da pele sem que se evapore indica que o resto do dia, para além de nublado, será quente e húmido. Uma boa chuvada seguramente que refrescaria o tempo e afastaria este pesado chumbo que me envolve, que em Luanda, na estação quente, prenunciaria  grandes e violentas bátegas de água quando não relampejantes e ensurdecedoras trovoadas. Mas este é um país de brandos costumes, de pequenas tempestades, de meias águas e de meias tintas. E depois nem sequer há os quilómetros de areia de praias para mergulhar como na minha terra perdida. Como se não bastassem os ajuntamentos, as praias da costa da Arrábida estão na sua maioria impróprias para consumo devido ao elevado grau de poluição. De modo que ao fim do dia, após o emprego, resta apenas a água fresca do chuveiro.
 Já mudámos de edifício, vai para mês e meio.
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Agora trabalhamos no centro da cidade, mas as relações entre as pessoas alteraram-se radicalmente no enorme casarão de seis pisos e paredes frias onde se concentraram vários serviços municipais até então espalhados  pela cidade. Distribuídos que estamos pelos vários andares com múltiplos corredores e gabinetes, maior é o isolamento pois menos  vezes nos cruzamos uns com os outros, para além de se ter tornado menos natural assomarmos e permanecermos nos gabinetes uns dos outros.
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Fiquei num gabinete pequeno, com o meu colega geógrafo, e porque a sala  é pequena e sem estiradores, foi possível torná-lo menos árido e mais acolhedor  que os enormes salões onde despejaram engenheiros, arquitectos e desenhadores, perdidos no meio dum espação onde largaram o mobiliário de estilos e feitios díspares. (MMA 1994.06.15)

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1996

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda, para a minha tia Lili ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou‑me a ler as cartas que reavera ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.
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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recortes, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais.  (...)
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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor‑me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência. 
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Foto arqª Nina - Victor Nogueira na Divisão de Planeamento Urbanístico (Tetra - 1987) - no painel de corticite, entre outras "preciosidades", cartoons de Quino sobre urbanismo e o poema atribuído a brecht sobre a "indiferença" -- Primeiro levaram os comunistas, Mas eu não me importei Porque não era nada comigo. Em seguida levaram alguns operários, Mas a mim não me afectou Porque eu não sou operário. Depois prenderam os sindicalistas, Mas eu não me incomodei Porque nunca fui sindicalista. Logo a seguir chegou a vez De alguns padres, mas como Nunca fui religioso, também não liguei. Agora levaram-me a mim E quando percebi, Já era tarde.
Foto Victor Nogueira - nascer do sol visto duma das varandas da minha casa, do alto da torre no cimo duma encosta
Foto Victor Nogueira - Setúbal - av 5 de outubro
Foto Victor Nogueira - Setúbal - av 5 de outubro (entro de trabalho do pcp)
Foto Victor Nogueira - Setúbal - antiga casa do corpo da guarda e muralha medieval (museu do barroco)
Foto Victor Nogueira - Setúbal - porta do sol na muralha medieval
Foto Victor Nogueira - Setúbal - praça do bocage
Foto Victor Nogueira - Set´bal - largo da misericórdia
Foto Victor Nogueira - Setúbal - capela do senhor jesus do bonfim
Foto Victor Nogueira - Setúbal - capela do senhor jesus do bonfim
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico
Foto Victor Nogueira - Setúbal - praça do bocage
Foto Victor Nogueira - Setúbal - postigo da ribeira velha, na muralha medieval
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico - largo do poço do concelho
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico - antigo colégio dos jesuítas
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico - sociedade recreativa caprichho setubalense (antigo hospital da misericórdia)
Foto Victor Nogueira - Setúbal - lota da pesca
Foto Victor Nogueira - Setúbal - largo josé afonso (antigo parque das escolas)
Foto Victor Nogueira - Setúbal - memorial a luísa todi
Foto Victor Nogueira - Setúbal - jardim do quebedo (palhais)
Foto Victor Nogueira - Setúbal vista do forte de s. filipe
Foto Victor Nogueira - castelo de palmela visto do forte de s. filipe
Foto Victor Nogueira - Setúbal - praça de portugal e monumento ao 25 de abril e às nacionalizações
Foto Victor Nogueira - Setúbal - parque verde da lanchoa
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico - bairro das fontainhas
Foto Victor Nogueira - Setúbal - centro histórico - bairro das fontainhas
Foto Victor Nogueira - Setúbal - chaminé qinhentista na av luísa todi
Foto Victor Nogueira - Setúbal - antigo casino setubalense, que foi um dos melhores cinemas do país
Foto Victor Nogueira - Setúbal
Foto Victor Nogueira - Setúbal - av luísa todi
Foto Victor Nogueira - Setúbal - setúbal vista das escarpas de s. nicolau
Foto Victor Nogueira - Setúbal - setúbal vista do jardim das escarpas de s. nicolau
Foto Victor Nogueira - Setúbal - setúbal vista do jardim das escarpas de s. nicolau
Foto Victor Nogueira - Setúbal - cena no jardim e fonte de palhais
Foto Victor Nogueira - Setúbal - cena no jardim e fonte de palhais
Foto Victor Nogueira - Setúbal - cena no jardim e fonte de palhais
Foto Victor Nogueira - Setúbal - grafitti
Foto Victor Nogueira - estuário do rio sado (antes do alargamento do porto fluvial)
Foto Victor Nogueira - estuário do rio sado e a península de tróia, ao fundo
Foto Victor Nogueira - Setúbal - av 5 de outubro
texto - Victor Nogueira
Foto Victor Nogueira -
Foto Victor Nogueira - pôr-do-sol em setúbal, no estuário do sado

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