* coligidas por Victor Nogueira
Meu senhor de mim
Escrevo e não sei ainda se alguma vez lereis estas linhas sabendo que a vós são dirigidas, se alguma vez as decifrareis, estranhos que somos um para o outro, se alguma vez por vós o meu retrato mudará e para vós inventarei com signos gastos palavras novas que sejam mágicas e só vós sabereis que vos foram destinadas.Vejo-vos à janela e entre nós o mar oceano da cor dos vosso olhar é um caminho de veredas a construir, áspero ou suave, brilhante ou baço, aventura com a ventura da descoberta.
Para mim que apenas vos vejo à janela com o universo entre nós soides apenas e por enquanto uma imagem, o reflexo dos meus sonhos tecidos como se brocados fossem na sua tessitura, uma palavra aqui, um sorriso além, uma lágrima acolá … Uma imagem talvez fruto de enganos meus !
Imagem, reflexo, imaginação – não sabeides quem sou porque ainda estranhos somos, na aparência do que não é nem o essencial nem profundo. Em sonhos imaginei um poema, numa linguagem para mim estranha, talvez a linguagem do futuro que dizem só a Deus pertencer: quereides lê-lo/interpretá-lo para mim, para nós !? Dir-me-eis que o tempo é outro, hoje de inverno ou de inferno, antítese do de outrora, mas ao Espírito Santo que me inspira todas as liberdades são permitidas para estender perante vós uma rede-teia-tela feita com o vosso encanto e sedução, pois …
Neste jogo de palavras
e de gestos comedidos
.
Aqui
neste canto da cidade
preso à roda do leme
em sonhos
que sonho em ti
busco o passado que não fui
no futuro que não serei
suspenso do teu andar
Arde-me o sangue nas veias
neste fogo vento suão
murmúrio do teu sorriso
verde brisa na planura
fresca do teu olhar
Ainda não consigo inventar para vós palavras novas sobre sentimentos que parecem únicos mas se repetem remoçados ao longo dos milénios, transmitidos de geração em geração de modo imperfeito e com o sentido não de quem os viveu mas com a imaginação/reflexo de quem as lê !
Não sei se quem escreve o faz interminavelmente sobre o mesmo embora com a aparência da novidade artesanal. Talvez assim seja, talvez quem escreve seja o eterno alquimista-litógrafo em busca da sempre longínqua pedra filosofal que no horizonte se perfila como o arco-íris que atravessa a abóbaba celeste, sete-céus na mouraria encantada, quanto o sol refulgente afasta as gotas de chuva após a tempestade. E no entanto as gotas de chuva irmãs do orvalho matinal estão lá, refractando a luz, desnudando a cor para lá da brancura num incessante jogo de união e síntese ou desdobramento e cisão.
Não sei pois o vosso nome, qual inventarei para que apenas nós dois saibamos quem soides, nem que rimance será por nós esculpido. Não basta que eventualmente me digais ou para vós murmureis como outros, breve sumidos, mo fizeram, inconstantes ou temerosos: “tenho de conhecer esta dona” , tenho de rasgar-lhe a clausura, partindo-se em voltas ao redondel em círculo fechado ou em espiral.
Toda eu sou um sonho. um novelo, e sigo-vos com o meu olhar, sigo-vos meu senhor de mim, meu senhor dos cabelos do trigo em flor, em eterna mutação, acompanho-vos com o vosso ar decidido, encanto-me ao pensar no alvoroço do nosso primeiro beijo, supremo pecado que Deus misericordioso abençoará, sorrio com a vossa voz cristalina, que imagino atenciosa/atenta, cálida e calorosa, no areal à beira-mar, ondas do mar de Vigo, com o céu estrelado, miríades de luzeiros no “céu”, rendo-me à vossa (aparente) timidez, busco em nós uma paleta feita de cetim e veludo e linho e brocado e seda com a qual se constrói, dia a dia e para sempre, algo tão inconsistente, maleável, mutante e frágil como é o futuro.
As palavras levam-nos por vezes por caminhos que não eram os que projectámos no início e ficando escritas perdem a fluidez e aportarão/apontarão a ilhas ou continentes desconhecidos, com os quais não sonháramos - sonho ou pesadelo, noite e dia. Mas quem não se faz ao mar fica em terra rodeado de montanhas.
Sigo-vos apesar do mar-oceano entre nós e espero por vós, a cela aberta com portas e janelas escancaradas ao sol, ao mar e ao vento e à chuva se a chave e o caminho souberdes encontrar. Para que as palavras ganhem outra qualidade e outro sabor. Porque estas são ainda imperfeitas ! Porque escondidos/desconhecidos estamos um do outro !
Não tardeis para que vos conheça, para que em vós me reconheça, para que em vós me encontre. Ah! Tende piedade de mim que neste fogo tempestuoso ardo e me consumo e me perco.
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Meu senhor de mim
Grande trovoada desabou esta tarde sobre évoraburgo. Olho pela janela e o céu está dum azul claro, esbranquiçado.
(…)
Acabei de receber notícias vossas. Estou aborrecida. Tenho saudades de vós, de estar convosco. Pensava que virieis sábado, poderíamos ir até à Serra de Ossa, por exemplo. Diria à madre abadessa que iria ter com meus irmãos. Poderíamos almoçar na Aldeia da Serra. Domingo trar-me-ias de regresso.
Custa-me estarmos longe um do outro, não poder rir convosco, falar convosco, acalmar em vós o meu desassossego. Por isso estou aborrecida. Em visões e sonhos, pecados meus, apareceram-me estas palavras num modo de escrita que não é o deste nosso tempo mas que tão bem exprimem o meu sentir, o sentir das saudades e desejo de
«Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura
o lume breve entre as nádegas e o ventre, o peito, o dorso
descer aos flancos, enterrar
os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca, esquecer a mão errante
na festa ou na fresta
aberta à doce penetração
das águas duras, respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão.
[..]»
Eugénio de Andrade – Nas ervas.
Não sei o que seja o amor. Será talvez este carinho, esta ternura, esta loucura que por mim está em vós ? Não entendeis como é negar o rio que corre para o mar levantar-lhe diques e barragens ? Não entendeis que sufocar a ternura que está em nós e a causa da [nossa] inquietação [...] ?
Apesar de tudo tenho procurado sempre, ao longo deste tempo, não arranjar compromissos que me impedissem de encontrar-me convosco, que me impedissem de vos ver no parlatório. E é com mágoa que fico a saber que os exercícios militares são uma razão, mais uma, suficientemente forte para prender-vos aí aos fins de semana. Ah! Como é dolorosa a vossa ausência, como é dolorosa esta espera pela vossa sempre adiada visita ! Ah! Como me custa não ser senhora de mim nesta clausura em que querem encerrar, como me custa a disciplina a que estais sujeito, como me tolhe esta nossa falta de liberdade, estes pesos que nos atrofiam e nos não deixam ser a brisa que livre e saltitante corre pela ondulante seara na campina, suave e límpida !
Por vós e em vós morro, meu senhor de mim ! Será de pedra o vosso coração ? Não deixeis que assim seja.
Vem de
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gravura de milo manara in
http://librosdelzorrorojo2.blogspot.pt/2013/04/cartas-de-la-monja-portuguesa.html
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