23 de março de 2013 ·
* Victor Nogueira
Bem sei que os textos longos são ilegíveis para a maioria embrenhada no fastfoodwritereadanddiscard. Mas eu sou incorrigível, não reciclável, um caso completamente perdido. Bem sei também que "alguéns" dirão - com certa razão - que nas últimas semanas quase não me tenho pronunciado sobre a maioria do que partilham comigo, nem publicado no meu blog Ao Sabor do Olhar (1). É certo. Mas ... nem sempre os amigos estão prontos, nos tormentos ! Porque em verdade vos digo: cada um de nós é apenas ele próprio e a sua boa ou má circunstância !
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De repente é como se todas as estrelas se apagassem ficando o cansaço e a velha vontade, por vezes renascida, de partir para longe, de apagar tudo, como se fosse possível recomeçar tudo de novo, rasgando o que escrevera, lixo para lançar aos quatro ventos, porque não ria, nem chorava, nem tinha uma pedra no lugar do sentir pelo qual se deixara envolver.
Estava assim porque o tinha considerado seu igual e confiara nele e com ele procurara falar sem reservas. Parecia contudo evidente que ele jogava à defesa e que as palavras seriam para ele fogo de artificio e manobra de diversão por detrás das quais se escondia e protegia. Assim o julgava, apesar de poder considerar-se má leitora dos factos e dos gestos, como outrora o fora de outras pessoas, nuns casos porque se ficara pelas palavras, noutros, como no presente, por ter procurado "ler” para além delas.
Talvez a considerassem presumida porque em determinada altura do seu relacionamento não acreditara em tudo o que ele lhe dizia, relativamente a ela própria e aos sentimentos que afirmava nutrir por ela: seria uma presunção diferente da que ele tinha, porque ela perante ele se descobrira, talvez cedo e desajeitadamente demais, talvez porque tivesse lido nele aquilo que desejara ler. E assim, conhecendo-lhe os sentimentos dela, seria levado a pensar que lhe bastaria dizer quem era para que ela largasse o trabalho ou interrompesse a reunião para atendê-lo ao telefone, fosse do emprego, fosse da casa onde morava.
Era simultaneamente verdade e mentira afirmar que pouco ou nada lhe interessava saber se ele estivera, estava ou algum dia poderia vir a estar "enamorado” por ela. Era de presumir que fosse adulto, crescido, responsável; então porque não haveria de acreditar no que ele lhe dizia e deixar-se de "poesias" e de imaginações!?
Recordava-o por vezes com uma grande ternura mesclada de inquietação e desassossego. Lembrava-se das primeiras vezes em que o vira, quando procurava conhecê-lo, e de como se encantara por ele. Recordava-se das vezes em que pretendera envolvê-lo numa longa e doce caricia ou o desejara como um homem pode ser desejado por uma mulher. Como esquecer a rede em que se deixara enlear, que ele muitas vezes parecera também tecer e outras rompera? Recordava o seu jeito gaiato, sorridente e brincalhão, sem esquecer os desencontros e as vezes em que ele disparatara ou faltara sem dizer água vai, apesar da importância que ela, parvamente, dera à sua presença e companhia.
Ele dizia-se amante da liberdade e no entanto não poucas vezes desrespeitara a dela, deixando-a a falar sozinha, com a refeição fria ou o fim de semana “estragado". Ele dissera preocupar-se com o efeito que os seus actos e as suas palavras poderiam provocar nos outros, por recear e não querer magoá‑los, mas não poucas vezes a magoara, sem que ela soubesse verdadeiramente distinguir quando falava a sério ou na brincadeira ou se estava apenas desatento por feitio ou preocupação. Não podia esquecer-se das vezes em que ele lhe entrara pela casa dentro, enchendo o ar de poalha dourada e refrescante, libertando a sua fragilidade, como ave inquieta na brisa que ela era.
Recordava-se disso e de muitas coisas e palavras, que gostaria tivessem (o)corrido ou acontecido de outro modo. E lembrava-se de algumas cartas, poucas, duas ou três, que lhe escrevera, arrumadas no fundo duma qualquer gaveta, porque resolvera deixar sedimentar as palavras, que deste modo, com o decorrer do tempo, haviam perdido o sentido e a oportunidade. Pensava ser natural que os homens e as mulheres procurassem uns nos outros amizade, ternura e carinho, considerava natural que os homens e as mulheres se sentissem mutuamente atraídos por serem de sexos diferentes ou que, se fosse caso disso, pudessem ir para a cama um com o outro, dum modo saudável, sem táximetro e tabela de preços consoante o serviço.
Mas nem sempre acontecia o que deveria ser natural, não poucas vezes porque muitas e variadas razões levam a levam a renegar, condicionar, proibir e "regulamentar" a sexualidade e as suas manifestações duma forma que nada tinha a ver com a expressão saudável da vida.
E fora como uma expressão de vida e um cântico de alegria que ela o considerara, de forma aberta. No entanto e talvez demasiado cedo partira, quando em vão por ele esperara, para logo de seguida considerar o amor um bem que suaviza, quando alguém afaga a nossa vida, o que lhe dissera inopinadamente.
Há na vida um tempo e uma ocasião para tudo e para cada coisa, segundo expressava um belo poema judaico, e por isso talvez as palavras e os sentimentos dela tivessem sido expressos demasiado cedo.
Entendia ser natural que o desejasse como natural seria que outros homens a desejassem, mas não ele, que até era um homem que sabia "provocar" as mulheres, que a "provocara" não poucas vezes, embora dum modo que na altura lhe parecera "natural", sem maldade.
Contudo, o passar dos dias e os "desentendimentos” pelo que talvez fosse ou tivesse sido por ambos desejado fazia com que ela pensasse já não ser natural que ele "provocasse" e amesquinhasse (consciente e deliberadamente ou não) quem "provocara" (por ela não o entender), apenas porque teria tido com a mulher com quem vivera experiências, isto é, vivências, humilhantes ou perversas, gerando situações que ambos não haviam conseguido ultrapassar (supondo que ele desejaria ultrapassá-las), por preconceito ou falta de simplicidade ou por utilizarem gestos e códigos diferentes. Situações que não haviam logrado superar em busca da amizade, do amor, da ternura, do prazer, da paz ... .
É um facto que fora por ele seduzida e que, ao considerá-lo seu igual, procurara sobretudo a sua amizade. Mas tendo ambos códigos e chaves de leitura diferentes, só veramente poderiam saber quem eram através da convivência, para descobrir o que estava para lá das categorias redutoras que (des)ajudavam ao entendimento das pessoas. Porque ele falava nas mulheres dum modo simplista, cómodo, mas irreal (são todas iguais, logo são todas tratadas da mesma maneira); outros falariam nos homens (são todos iguais, andam todos ao mesmo, logo devem ser todos tratados da mesma maneira).
E no entanto, por temperamento, vivência e "leitura", ela sabia que há homens e mulheres, com características comuns, é certo, mas que para além disso cada pessoa tem as suas características próprias, especificas, da sua cultura e classe social; para lá das "cómodas” categorias e definições redutoras ela procurava o que existe de próprio, de pessoal, fosse no Zacarias ou na Carlota, fosse na Maria ou no Manel, independentemente de se não empenhar em "convencer” as pessoas, o que por vezes em nada facilitava a sua relação com outrem.
Falava com as gentes, é certo, mas não como apóstolo; buscava aquelas com as quais se identificava, afastava-se das que nada tinham em comum com ela naquilo que reputava essencial, aceitava e tolerava as outras.
Sendo assim, é natural que tenha pensado e lhe tenha dito "gosto deste homem, gosto dos filhos dele, postaria de com ele viver e compartilhar o dia-a-dia". É natural que ele lhe respondesse ter outros objectivos prioritários na vida e que ela estava à margem deles, apesar dela o considerar seu igual e procurar respeitar a sua liberdade. Admitia contudo que algumas vezes os seus gestos e atitudes para com ele pudessem parecer desmenti-la, apesar de serem também condicionados pelos gestos e atitudes dele. Admitia pois que ele quisesse provar que sozinho poderia triunfar, sem a solidariedade dos outros, e que ela o desejava "controlar", a ele que estava farto de prisões, pressões e bofetões; por isso talvez tivesse sido erradamente levado a pensar para consigo mesmo que o paleio é sempre igual e que no princípio são tudo rosas e arco-íris, para lá dos quais surgem os espinhos e as tempestades e os ventos ciclónicos.
Tudo bem, continuaria ela a pensar, ninguém a mandara ser apressada, sem dar tempo ao tempo, embora depois os erros se possam a vir a pagar raro, face à brevidade da vida e à impaciência dos mortais. É natural que os sonhos" não sejam os mesmos para todos, é "natural" que para algumas pessoas fique a nostalgia dos sonhos que se sonharam mas não viveram ou falharam. Afinal os sonhos nem sempre são pesadelos e por isso podem também ser a expressão dos anseios com vista à concretização, talvez por vezes dum modo errado e desajustado, dos desejos de uma vida diferente, melhor, mais cheia e saborosa.
Como a que ela pensara encontrar nele e retribuir-lhe!
Setúbal 1990.03.19/20
(Victor Nogueira, sobre uma epístola de S. Sebastião aos gentios, em 4 de Outubro de 1989, a D.
(1) - Ao Sabor do Olhar - o blog das minhas amizades e conhecimentos
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Luisa Neves
Excelente. Bom fim de semana. Abraço. 😉 🙂
12 a
Maria Célia Correia Coelho
Li a primeira vez, mas creio que devo reler, prmeiro porque gostei mtº, depois porque tem tantas emoções, recordações, culpa, análise das relações sentimentais, enfim, meditar sobre encontros e desencontros da vida! BFS Victor 🙂
12 a
Manuela Vieira da Silva
Começa a escrever um livro a partir daqui, Victor Nogueira. É boa literatura e começas lindamente. As complexidades entre homem e mulher, o jogo de sedução mesclada de inocência; as decepções que limitam e bloqueiam situações aparentemente fáceis. Porque a espontaneidade é sempre verdadeira, depressa acaba a brincadeira. Gostei muito.Bjos.🙂
12 a
Maria Célia Correia Coelho
"Afinal os sonhos nem sempre são pesadelos e por isso podem também ser a expressão dos anseios com vista à concretização, talvez por vezes dum modo errado e desajustado, dos desejos de uma vida diferente, melhor, mais cheia e saborosa." Mas é verdade tudo isto, muitas vezes somos incapazes de concretizar alguns sonhos para nós, pesadelos para outros a quem não queremos magoar, nem temos coragem... 🙂 Pronto, já reli!!
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12 a
Ana Maria Madail
Excelente!!! Obrigada pela partilha..
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Carlos Rodrigues
Bela imagem, Victor, não sei se é nascente se é poente. Li o texto atentamente e lembrou-me Lobo Anunes em " A explicação dos pássaros ", mais propriamente nos encontros e desencontros homem-mulher e o peso do meio em tudo isso. Obrigado, um abraço.
12 a
Deolinda F. Mesquita
Victor, Excelente! adorei. Obrigada, bom fim de semana, bjs
12 a
Isabel Dias Alçada
Bom fim de semana amigo, 😘
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Graça Maria Teixeira Pinto
🙂
12 a
Ana Albuquerque
Pois é. É exactamente como tu dizes; Nós somos nós e as nossas circunstâncias. Com tudo o que isso possa acarretar.
12 a
Alice Coelho
Há pesadelos que são sonhos lindos de se viver e guardar!!
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Yolanda Botelho
Obrigada meu esquerdista preferido.....Bjs
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Margarida Piloto Garcia
Victor Nogueira, ontem escrevi um extenso comentário a este teu texto. Foi feito ao sabor do momento e por tal genuíno e sentido. Agora o dito desapareceu e eu já não posso recriar os sentimentos de ontem.
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Victor Barroso Nogueira
Graças a todos os/as comentaristas. Mas ... Alice Coelho xxxxxxxxxxxxxiiiiiiiiiiiiiiii pesadelos, não !!! Só sonhos com hidromel e avezinhas a chilrearem de regato em regato LOL Ana Albuquerque Nas circunstâncias estão também as envolventes. Margari… Ver mais
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Margarida Piloto Garcia
Estás engando amigo Victor Nogueira mas não gosto de frases feitas e lugares-comuns. Assim sendo, aquilo que esvrevo a dada altura sai naturalmente expressando o que sinto. 24h depois os sentimentos até se podem manter mas as palvras já não são as mesmas. E depois o problema de saúde traz-me um infinito cansaço que não me deixa fazer flash-back. Talvez numa outra altura...quem sabe?
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Belmira Patrício
grata amigo!
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Helena Sousa
A vida é uma maré, com tanta turbulência, e auqela espuma branca das ondas (com a puluição às vezes bastante branca acastanhadsa), assim são as vidas com pouca luz
11 a
Vitor Durão
"Estava assim porque o tinha considerado seu igual e confiara nele e com ele procurara falar sem reservas. Parecia contudo evidente que ele jogava à defesa e que as palavras seriam para ele fogo de artificio e manobra de diversão por detrás das quais se escondia e protegia. Assim o julgava, apesar de poder considerar-se má leitora dos factos e dos gestos, como outrora o fora de outras pessoas, nuns casos porque se ficara pelas palavras, noutros, como no presente, por ter procurado "ler” para além delas." Não se deve julgar sem se conhecer tudo, ou seja - os dois lados. Às vezes há acontecimentos de irracionalidade que só atingiram um dos lados e que impossibilitam leituras racionais por parte do outro. Podem até conduzir a impossibilidades de encontro mesmo contrariando a vontade desse lado. Enfim cada caso é um caso.
11 a
Editado
Judite Faquinha
Eu li com muita atenção, e, não acredito que me leve a considerar que haja seres humanos ele ou ela como iguais, podem ter muito em comum e, terem uma vivência muito saudável, mas há sempre um momento de desencontro... porque os caracteres não são totalmente comuns, e acontece que sonhos se tornem em pesadelos, mas se ambos forem mentalmente bem formados, podem conduzir-se a uma boa harmonia de entendimento...cada pessoa tem o seu eu, e este homem do texto não me parecia apaixonado por ela!!! A vida ainda com diferentes condições sociais, ou com as mesmas,há sempre um mar revolto com tempestades. Mas Victor o texto para mim, ainda que a minha formação social, seja apenas a experiência da vida...achei bem explicito e um belo trabalho adorei.bons sonhos. São neste momento 4:h 53 m beijokinhas,
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Madalena Mendes
Excelente literatura! A ver já em livro em partilha pelo mundo!
10 a
António Saraiva
Que pena não consigo partilhar. Raios partam o facesemface
1 a
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