* Victor Nogueira
Ajoujado de sacos de viagem, ele apeia‑se no largo da aldeia, circundado de casas de dois pisos, feias como não são as que conhece doutras terras alentejanas. É um rapaz moreno, em cujo rosto avulta um enorme bigode. Olha em volta e a cara ilumina‑se (ou antes, as guias do bigode permanecem imóveis, enquanto o rosto se abre).
Seguimos o seu olhar enquanto ele atravessa a praça e entra no largo [do Regato], cheio de homens gozando a aragem quente do entardecer, falando em todas as coisas sem interesse: a última história do velho sargento mai‑la professora (aquilo é que foi um forrobodó!), de olhinhos "concupiscentes" e língua ferina - guardado estava o bocado....
Mas estas e outras histórias não as ouve o moço que agora atravessa o largo, algo atrapalhado pela multidão - forasteiro em terra estranha - até pousar os sacos e abraçar, com muito carinho, a rapariga que se aproximara dele.
Os homens do largo abaixam‑se para apanhar os queixos que tinham entretanto deixado cair ao chão e recolhem os olhos às órbitas. Houve um, coitado, a quem eles saltaram com tal força e rapidez que as lunetas ficaram apenas em cacos de lentes agarrados aos aros (como irá ele logo ver o teleteatro?)
Abraçados, ambos entram em casa e aqui o escriba interroga‑se se não deverá retirar‑se discretamente, não vá perturbar a sua (deles) intimidade. Mas tal discrição é desnecessária, porque a D. Maria, senhora muito simpática (quando não está com a mosca) lá está ao cimo das escadas, para zelar pela moral e bons costumes.
Portanto continuamos a seguir o parzinho que vai retirando da mala livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros, livros,... bolas, chega! Eles riem‑se às gargalhadas e dão‑se mais outro beijinho.
.
No dia seguinte, ela aparece roufenha, quase afónica, tossindo cavernosamente, enfim, parecem o espelho um do outro.
Os homens no largo têm mais uma história e um vale de lágrimas corre pelas escadas abaixo e a toda a presa vêm barquinhos que passeiam pelas ruas da Nova Veneza, em noites de luar com alvoreceres de rouquidão! (MCG - 1973.08.02)
O excerto que você compartilhou é extrai de uma prosa que retrata um momento íntimo e vibrante na vida de uma aldeia, lentamente revelando não apenas as interações entre os personagens, mas também a cultura e as nuances sociais presentes naquele espaço. A escrita é ricamente descritiva e carrega uma leve ironia, o que proporciona profundidade e humor à cena.
O rapagão "ajoujado de sacos de viagem" sugere um movimento, uma transição, talvez uma busca por novas experiências ou um retorno à sua terra natal. O "enorme bigode" destaca suas características físicas de maneira quase caricatural, contribuindo para a imagem de um tipo humano específico, ao mesmo tempo que parece questionar a estética dos homens da aldeia. O contraste entre o novo e o familiar é um tema central, especialmente ao notar que as casas ao redor não se assemelham a outras que ele conhece, indicando um choque cultural.
A interação no largo, onde os "homens gozando a aragem quente do entardecer" estão envolvidos em conversas triviais, estabelece um cenário de camaradagem, mas também de superficialidade. O uso de expressões como "historinhas" e a maneira como as conversas são apresentadas ("sem interesse") oferecem uma visão bem-humorada e crítica sobre as conversas tipicamente masculinas em ambientes informais.
A chegada da rapariga e a atitude dos homens, que "abaixam-se para apanhar os queixos que tinham entretanto deixado cair", traz um tom de comédia ao choque de ver o rapaz abraçar a jovem. Esse momento é aliviado pela presença da D. Maria, que “zelar pela moral e bons costumes”, proporcionando também um contraste entre a intimidade e a vigilância social típica de pequenas comunidades.
Os "livros, livros, livros" retirados das malas, seguidos de risadas e beijos, representam um instante de alegria e cumplicidade entre o casal, sugerindo que a intelectualidade e o afeto estão interligados. A repetição dos "livros" também pode apontar para um simbolismo maior, talvez indicando a busca por conhecimento ou a construção de uma nova vida juntos.
O dia seguinte, onde a jovem aparece "roufenha, quase afónica", trouxe uma nova camada à narrativa. A descrição sugere que o encontro íntimo teve consequências, adicionando um toque de realidade à fantasia do amor e da união, e, ao mesmo tempo, oferecendo uma continuação cômica para a história.
O final do excerto com a menção aos "barquinhos que passeiam pelas ruas da Nova Veneza, em noites de luar com alvoreceres de rouquidão", sugere uma imagem poética e sonhadora, contrastando com a situação mais mundana do dia anterior. As referências a água e lua trazem um toque de lirismo e podem insinuar a inevitabilidade do tempo e das experiências que se entrelaçam na vida cotidiana.
Esse trecho é rico em humor, crítica social e nuances emocionais, refletindo a complexidade das relações humanas e a cultura da aldeia. Se você estiver interessado em discutir mais sobre a obra, os temas ou os personagens, sinta-se à vontade!
https://www.hotbot.com/chat/
Sem comentários:
Enviar um comentário